domingo, 31 de julho de 2016

REDES SOCIAIS: O MODERNO CANTO DAS SEREIAS PARA FLANÊURS ON-LINE

Em 2013 escrevi um texto intitulado “Um saco de batatas, spray de pimenta e vinagre: a salada insossa dos recentes protestos populares”, referente aos movimentos que tinham o ideal do “Passe livre”, mas se degeneraram de forma heterogênea e inconstante (“apolíticos”) por todo o país. A tese era centrada na análise histórica dos motins e protestos dos primórdios da Revolução Industrial (Marx, Thompson, Rudé, Hobsbawm) interpretados paralelamente aos novos valores da estética social atual: um protesto pelo consumo. O texto pode ser resumido na paráfrase de uma citação de Edward Thompson em “Costumem em comum”: “A cultural popular é rebelde, mas o é em defesa dos costumes”; ao passo que na atualidade poder-se-ia dizer que “a cultura popular é rebelde, mas o é em defesa do consumo”.

O artigo escrito no calor da hora naturalmente recebeu críticas da comunidade acadêmica que viu com entusiasmo o “despertar das massas” em consonância com o apoio tácito das mídias no jargão “o gigante despertou” (sic). O método era incipiente e hipotético, eu não conhecia ainda os trabalhos de Zizek e Zygmunt Bauman que também analisavam os protestos da França e Inglaterra (2011) como “revolta sem revolução; uma inconveniência e não uma ameaça”. Os fatos ulteriores referendam a sociologia estética de Bauman: reação conservadora e falência dos movimentos sociais, a contrarrevolução antes da revolução.

Outra contribuição importante de Zygmunt Bauman é a refutação da tese recorrente nos movimentos estudantis e no senso comum pretensamente de esquerda, de que as redes sociais (Facebook, Twitter, Whats-App e Instagram) são um instrumento importante de mobilização, organização e atração das massas em prol das revoltas ou protestos populares. Não, hoje pode-se dizer que as coisas se passam justamente ao contrário das certezas dos tempos de “Primavera árabe”. As redes sociais tem um efeito “terapêutico” apenas, a ilusão de não estar sozinhos no meio da multidão. A necessidade de estar sempre conectados com seus pares pelo Facebook ou Twitter leva à atrofia da criatividade. O efeito colateral evidentemente é que ao anunciar e entregar analgésicos morais comercializados, os mercados de consumo apenas facilitam, em vez de evitar, o enfraquecimento, o definhamento e a desagregação dos vínculos inter-humanos. (BAUMAN, 2013, p. 108).

É natural que uma geração leitora de mínimos carácteres possíveis apreenda apenas o nível mais baixo de aprendizagem que é o da transferência de informação a ser memorizada. Estudo da Kayser Family Fundation afirma que jovens de oito a dezoito anos gastam agora mais de sete horas e meia por dia com smartphones, televisores e outros instrumentos eletrônicos, em comparação com as menos de seis horas e meia de cinco anos atrás. Quando se acrescenta o tempo adicional em que os jovens passam postando textos, falando em seus celulares ou realizando múltiplas tarefas, tais como ver TV enquanto atualizam o Facebook, o número sobe para um total de onze horas de conteúdo de mídia por dia. (BAUMAN, 2013, p. 53).

O consumo das redes sociais não está prioritariamente relacionado ao fetichismo da mercadoria, mas a ilusão de consumir a participação política. O fascismo alemão foi pioneiro na utilização estética como instrumento de falência da organização operária, com o cinema. Ao permitir que as massas fossem filmadas os nazistas davam-lhes a impressão de que eram parte do sistema político, naquilo que Walter Benjamin chamou de “estetização da política”. Ao permitir que as classes trabalhadoras se expressassem teoricamente, o nazismo lhes restringia a participação de fato, democrática, na política.

Nos dias de hoje, graças a despreocupada e entusiástica autoexposição dos viciados em Facebook a milhares de amigos e milhões de flâneus on-line, os gerentes de marketing podem atrelar no carro de Jagrená consumista vontades e desejos mais íntimos e aparentemente mais “pessoais” e “singulares”, articulados ou semiconscientes – já efervescentes ou apenas potenciais. Personalidade única: trata-se de uma verdadeira ruptura nos destinos do marketing e da política. O “Carro de Jagrená” (no hindu, Jagannãth, “senhor do mundo”) transporta anualmente um ídolo de Krishna pelas ruas, sob suas rodas se atiram os seguidores que são por ele esmagados. Trata-se de uma metáfora criada por Anthony Giddens para caracterizar a modernidade.

O flâneur, por sua vez, é um resgate de uma expressão típica de Baudelaire: o caminhante solitário na multidão. Baudelaire gostava da solidão, mas se possível no meio da multidão.  Para Alan Poe, o flâneur é sobretudo alguém que não se sente integrado em sua própria sociedade, por isso procura a multidão. Em síntese, trata-se de um conceito sociológico da própria cidade moderna, de solitários abandonados entre a multidão. Isso os coloca na mesma situação da mercadoria, apesar de não terem consciência dessa particularidade. “Penetra-o como um narcótico que o compensa de muitas humilhações. O transe a que se entrega o flâneur é o da mercadoria exposta e vibrando no meio da torrente de compradores” (BENJAMIN, 2015, pp. 50-57).

A ideia do flâneur on-line pode ser melhor compreendida em síntese com a alegoria do “canto das sereias”, de Adorno e Horkheimer sobre o conceito de “indústria cultural”. Segundo esses pensadores da Escola de Frankfurt, na Dialética do Esclarecimento, a função da indústria cultural consiste justamente em impedir eficazmente qualquer desejo de transformação, qualquer esboço de inciativa por parte dos trabalhadores. O engodo da indústria cultural será duplo. Ela mantém as massas surdas, não as encoraja a recuperar a audição; reforça ainda mais essa enfermidade ao fazer acreditar que não há problema nenhum, que todos escutam muito bem. Produz, então, uma séria sonora ininterrupta e sempre repetitiva que preenche constantemente ouvidos e cabeças como se não houvesse nem possibilidade de silêncio nem possibilidade de outros sons. (GAGNEBIN, 2014).

 A indústria cultural não só mascara a violência social que separa a classe privilegiada (que pode ter sensibilidade artística) da massa de trabalhadores; em vez de denunciar a surdez destes últimos, os acostuma a ouvir sempre o mesmo disfarçado de novo, leva-os, portanto, àquilo que Adorno chama, em outros textos, de “regressão da audição”. No episódio das Sereias, em A Odisseia, os remadores são, simultaneamente, impedidos de distrair-se e obrigados a uma distração, a um divertimento imposto. Escreve Adorno: “Alertas e concentrados, os trabalhadores tem que olhar para frente e esquecer o que foi posto de lado. A tendência que impele à distração (Ablenkung), eles têm que se encarniçar em sublimá-la num esforço suplementar”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 45).

Nessa obra de Adorno e Horkheimer, o poder da indústria cultual é de tal maneira avassalador e nefasto, que esta se transforma numa versão moderna da antiga coerção mítica. Parece não haver, nesse poder devastador, nenhuma possibilidade de brecha, de ruptura. Há apenas distração/entretenimento (Zerstreuung, Unterhaltung) – que a indústria cultural impõe como única fruição permitida. Com as redes sociais não existem mais atores sociais, mas apenas espectadores de si mesmos. Pois há o rompimento com o meio de comunicação (Medium) característico da indústria cultural. Trata-se de uma “cultura de cassino” virtual que impele à distração ou um “narcótico”, como diz Benjamin.

Estas observações nos remetem novamente para a Odisseia, de Homero, livro mestre e exemplo maior na literatura ocidental no que se refere a resistência aos obstáculos colocados pelos deuses (e agora pela inteligência artificial), na tentativa da construção da memória coletiva, da história narrativa, do que de fato importa: a vida real. O poema épico narra o difícil retorno de Ulisses de Tróia para Ítaca, na Grécia. Na viagem, ele se depara com diversos obstáculos colocados propositalmente para impedir seu regresso. No Palácio de Circe, Ulisses (ou Odisseu) demora um ano inteiro vivendo de delícias e esquece-se da casa e de Penélope, sua esposa. Num dado momento, ao comer “o lótus mais doce que o mel”, Ulisses se esquece até de narrar os fatos.

A memória, a lembrança e a rememoração são os objetos do historiador. Na mitologia grega, Zeus toma como sua quinta esposa Mnemosine (a deusa da memória). Até o deus do Olimpo precisava ser lembrado para existir. Mnemosine existia para suprimir Lethe (o esquecimento). As redes sociais são a “flor de lótus” da modernidade que aliadas ao “canto das sereias” da indústria cultural formam um tipo ideal (no sentido weberiano) de dominação simbólica que poderia ser sintetizado na expressão “jaula de aço”, novamente emprestado de Max Weber. Este é um terreno propício para os abandonados e solitários na multidão: os flâneurs on-line.

A atuação amoral e imoral da Cambridge Analytica em eleições no EUA, no Brexit britânico e recentemente no Brasil, leva-nos impreterivelmente a uma visão trágica das redes sociais. Algoritmos e inteligência artificial aliados a uma Big Data de informações pessoais levam a máquina a direcionar o pensamento humano de acordo com os interesses sórdidos de quem pagar mais. Não basta, porém, “desplugar”. Mas sobretudo articular mecanismos eficientes para resistência e conscientização. A educação, a arte, a música, são caminhos possíveis.    

“Minha suspeita (rezo para estar errado!) é que a ação mediada pela internet só possa obter a substituição da não política por uma ilusão da política. Até agora, infelizmente, minhas suspeitas têm sido confirmadas. Nenhuma das explosões populares de protesto estimuladas pela internet e eletronicamente ampliadas conseguiu remover os motivos da raiva e do desespero das pessoas”, conclui Bauman (2013, p. 79). Ao passo que poderíamos concluir com a sentença crítica de Karl Marx, que bem sentiu a falácia ilusória da socialdemocracia em seu nascedouro. Na “Crítica ao programa de Gotha” ele escreve: “cada passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas”. O lugar por excelência de uma coletividade atuante e desperta é a rua e sua cor é o vermelho, e não a blue light das telas touch screen.

Referências:
ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: conversas com Ricardo Mazzeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
BENJAMIN, Walter. Baudelaire e a modernidade. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Limiar, aura e rememoração. Ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo: Editora 34, 2014.

HOMERO. Odisseia. Tradução direta do grego, introdução e notas por Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2013.


Publicado no blog da Revista Espaço Acadêmico: https://espacoacademico.wordpress.com/2018/11/11/redes-sociais-o-moderno-canto-das-sereias-para-flaneurs-on-line/

terça-feira, 19 de julho de 2016

ESCOLA SEM PARTIDO: A NOVA AVENTURA DE KARL MARX CONTRA O BARÃO DE MÜNCHHAUSEN

Há pelo menos dois séculos se discute a suposta isenção ou imparcialidade – o método – em ciências humanas. Ou quase quatro séculos se pensarmos em Descartes e o more geométrico do “Discurso do método” (1637). Se optarmos por comparar os métodos científicos, colocando lado a lado marxismo e positivismo, ficará evidente que o discurso da Escola sem partido converte-se sorrateiramente numa formidável censura. Uma vez comparados, torna-se mister citar a anedota do Barão de Münchhausen, este herói picaresco e dialético que retorna de tempos em tempos para reviver a batalha perdida para Marx.
Condorcet, filósofo iluminista e contemporâneo da Revolução Francesa, é o pai do conceito de Positivismo.  Condorcet estava inserido no pensamento racionalista e iluminista, no anticlericalismo francês típico da grande Revolução, buscava assim uma ciência objetiva,
relacionada à matemática e física, visando escapar dos preconceitos das classes dominantes de então: a aristocracia e o clero. A ciência positiva deveria se libertar de todos os dogmas políticos ou religiosos, vistos como preconceito e obscurantismo. Mas o primeiro a utilizar o termo “ciência positiva” foi o socialista utópico Saint-Simon. O Positivismo em Condorcet como em Saint-Simon tem um aspecto utópico, crítico e busca a superação da subjetividade. Mas com Augusto Comte, discípulo de Saint-Simon, o conceito passa a ser conservador e distópico. A sociedade deveria ser interpretada tal como uma equação matemática ou lei da gravidade, ou do movimento da Terra em torno do Sol. (LÖWY,
Hoje, sabemos o quanto esse pensamento tem de simplicidade e até ingenuidade, mas, no final dos oitocentos, o positivismo influenciou sociólogos do calibre de um Émile Durkheim e historiadores como Leopond von Ranke. É bem conhecida a ilusão de Ranke, que almejava conhecer o passado “como de fato foi”, como algo fixo e cristalino. Mas o que é mais importante e conveniente compreender sobre o positivismo é a doutrina que lhe é subjacente: a ideia do progresso como algo inevitável e contínuo, como aperfeiçoamento linear da história e da humanidade. Justamente nesse ponto o positivismo fracassa enquanto método, pois ele reconhece apenas a evolução da técnica, do capitalismo, da indústria e não os retrocessos da sociedade. (BENJAMIN, 1994, 2012).
No clássico “As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen”, Michael Löwy examina a relação entre visões sociais de mundo (ideológicas ou utópicas) e conhecimento, no domínio das ciências sociais, a partir de uma discussão crítica com as principais tentativas de elaboração de um modelo de objetividade científica que surgiram no seio do positivismo, do historicismo e do marxismo. A crítica à disfarçada ou deliberada tentativa de isenção ou imparcialidade, da ciência livre de julgamentos de valor ou de classe, sobretudo nos positivistas, mas também em Max Weber, quando este afirma que na esfera das ciências sociais, uma demonstração científica metódica que pretende ter atingido seu objetivo, deve poder ser reconhecida como exata “da mesma maneira por um chinês”, surge de forma erudita num diálogo entre a utopia e as ideologias, para que o método sociológico torne-se não menos ideológico, mas sim, mais cristalino e objetivo.
A crítica tem um elemento bem humorado quando Löwy relaciona o “esforço de objetividade” da sociologia positivista, de Durkheim e seus discípulos, como uma ilusão ou mistificação, com a anedota do Barão de Münchhausen. Este herói picaresco, tal como os positivistas, quando se vê atolado num pântano em que ele e seu cavalo estavam sendo tragados e sem a ajuda de ninguém, agarrou seus próprios cabelos e, por meio deles, puxou-se para cima, trazendo consigo seu cavalo entre as pernas. Com esta alegoria bem humorada, Löwy (1995, p. 32) conclui “que os que pretendem ser sinceramente seres objetivos, são simplesmente aqueles nos quais as pressuposições estão mais profundamente enraizadas”.
A metáfora ou alegoria com o Barão de Münchhausen evidencia a estreita subjetividade nas ciências humanas, mesmo sob a máscara da isenção e imparcialidade. As ideologias de classe estão presentes mesmo em autores que advogam a objetividade da “ciência pura”. O proletariado, todavia, segundo Löwy não necessita desse aparado ideológico para provar sua verdade.
Na conclusão de As aventuras de Karl Marx, Michael Löwy resgata uma metáfora de Rosa Luxemburgo e compara o cientista social ao pintor de uma paisagem, pois a pintura depende em primeiro lugar do que o artista pode ver, isto é, do observatório onde ele se acha inserido. Mas pondera e afirma que o observatório ou mirante é o ponto de vista de classe, e, quanto mais elevado, permite ampliar o horizonte e perceber a paisagem em toda a sua extensão. O observatório mais alto é, naturalmente, o ponto de vista do proletariado. Pois a verdade é para o proletariado uma arma indispensável a sua auto-emancipação, ao contrário da burguesia que tem necessidade de mentiras ou ilusões para manter seu poder, o proletariado tem necessidade de verdade...
“A verdade é sempre revolucionária”, a frase de Antonio Gramsci surgiu quase vinte anos antes, como epígrafe do livro Método dialético e teoria política, de 1978. Esta obra é o prólogo, menos elaborado e sofisticado de As aventuras de Karl Marx. No entanto, já no grundisse (esboço) de 1978 a crítica à sociologia positivista como “uma simplicidade evangélica” fica explicitada. A tentativa epistemológica de assimilação da sociedade à natureza, da sociedade regida por leis naturais, invariáveis e independentes da vontade e da ação humana, “sob o impacto do marxismo, o mito positivista de uma ciência social neutra e assexuada como os anjos da teologia medieval foi severamente abalado” (LÖWY, 1978, p. 17).

Referências:
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
LÖWY, Michael. Método dialético e teoria política; tradução Reginaldo di Piero. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
_____. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo de positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 1994.
_____. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. 19. ed. São Paulo: Cortez, 2010.