Resenha:
ALEKSIÉVICH, Svetlana. As últimas testemunhas: Crianças na
Segunda Guerra Mundial. Tradução do russo Cecília Rosas. 1.ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018.
Quem leu o Diário de Anne Frank certamente teve uma
experiência de choque com os horrores dos campos de concentração nazistas,
através da sensibilidade da narrativa infantil. Agora imagine-se centenas de
milhares de Anne Franks, judias, polacas, ucranianas, eslavas, vivendo (ou melhor,
sobrevivendo) em condições sub-humanas, fatigadas pela fome, doenças, pela
carestia dos afetos dos pais, castigadas pelas intempéries do tempo,
testemunhando assassinatos e torturas inimagináveis mesmo para os adultos. Este
é o cenário do embate entre Alemanha e União Soviética, entre o nazismo e o
comunismo – que de fato decidiu a guerra na Europa – rememorados pela lembrança
de sobreviventes civis, crianças no momento em que a Segunda Guerra Mundial
eclodiu no leste europeu, quando Hitler rompeu o pacto de não agressão com
Stálin e deflagrou a Operação Barbarossa, em junho de 1941.
A premiada escritora Svetlana Aleksiévich, vencedora do
Prêmio Nobel de Literatura em 2015, entrevistou uma centena de sobreviventes da
Guerra e do fascismo e as fez falar de uma forma sutil, quase lúdica, do
retorno à infância. Psicanaliticamente se poderia apreender os motivos desse
regresso. A repetição é traço característico do traumatizado, que tende a
reproduzir involuntariamente a cena do trauma, no caso os horrores da guerra.
Essa narrativa expõe o leitor aos impactos da própria criança, pois Svetlana é
o exemplo do narrador benjaminiano, ela não explica sua narrativa e não existem
motivos para isso. Ela permite ao leitor que sinta algo semelhante aos
entrevistados no momentos de sua rememoração. Sua escrita restringe-se a um
parágrafo de prefácio e algumas linhas do epílogo, nada mais. É na recusa do
excesso didático que reside o gênio da escritora, isso torna até mesmo esta
resenha desconcertante.
“Na minha memória infantil ficou tudo gravado como um álbum.
Em fotos separadas... Na aldeia não sobrou nenhuma criança. Não havia com quem
brincar na rua...” (Valia Nikitenko, 4 anos em 1941). A lembrança da pequena
Valia exemplifica a construção da memória involuntária do trauma, “gravado como
um álbum”, em forma de imagens. O método da autora, de dar voz infantil aos
adultos, inverte completamente os lugares comuns da narrativa e da
historiografia, nosso “adultocentrismo” pouco declarado de impor a visão de
mundo do adulto à criança, deformando assim a verdadeira infância.
Talvez o texto que mais se aproxime da forma de “As últimas
crianças” seja a “Infância berlinense em 1900”, de Walter Benjamin. Nessa obra
o autor, como criança, produz uma mudança radical sobre a autobiografia,
através de construções imagéticas ou imagens dialéticas como ele mesmo as
define. Ao buscar as memórias no próprio inconsciente infantil Benjamim
privilegia o universo onírico, dos sonhos, a magia da infância em sua
plenitude. Com essa alteridade ele encontra a voz da “não linguagem” da “não
razão”, pois etimologicamente a palavra infância remete ao período anterior a
fala (do latim infantia, ou antes da
fala). Nesse sentido faz justiça ao postulado anotado nas notas para as Teses
Sobre o conceito de história: “A construção histórica é dedicada à memória dos
sem nome”.
O breve prefácio demonstra o lugar privilegiado da infância
em detrimento dos horrores da guerra:
No passado,
Dostoiévski fez a seguinte pergunta: e será que encontraremos absolvição para o
mundo, para a nossa felicidade e até para a harmonia eterna se, em nome disso,
para solidificar essa base, for derramada uma lagrimazinha de uma criança
inocente? E ele mesmo respondeu: essa
lagrimazinha não legitima nenhum progresso, nenhuma revolução. Nenhuma guerra.
Ela sempre pesa mais.
Só uma
lagrimazinha...
A narrativa através da memória infantil não deixa dúvidas
quanto a essa afirmativa. Convém citar algumas das mais comoventes:
“Não só os orfanatos passavam fome, as pessoas ao nosso
redor também, porque entregavam tudo pra o front.
Moravam 250 crianças no orfanato, e uma vez nos chamaram para o almoço, mas não
havia nada para comer. A educadora e a diretora estavam sentadas no refeitório
olhando para a gente e os olhos delas estavam cheios de lágrimas. (...) E
também tinham dois gatos famintos. Uns esqueletos! Que bom, pensamos depois,
que sorte que os gatos são tão magros, não vamos ter que comê-los. Não havia
nada para comer. (...) Na primavera, num raio de alguns quilômetros ao redor do
orfanato, não brotava uma árvore... Tínhamos comido todos os brotos. Comíamos
capim, comíamos tudo o que havia pela frente.” (Zina Kossiak, oito anos).
Lembro que os adultos falavam: “Ele é pequeno. Não entende”.
E eu respondia: “Como esses adultos são estranhos, por que eles acham que eu
não entendo nada? Entendo tudo”. Eu até achava que entendia mais do que os
adultos, porque eu não chorava, e eles choravam.
“A guerra é meu livro de história. Minha solidão... Perdi a
época da infância, ela fugiu da minha vida. Sou uma pessoa sem infância, em vez
de infância tenho a guerra.” (Vássia Khárevski, quatro anos).
“Se eu perguntasse a todos: o que é a infância? Cada um
diria algo próprio. Mas para mim a infância é mamãe, papai e bombom. Por toda a
infância eu queria mamãe, papai e bombom. Na guerra não só não provei nenhum
bombom como nunca os tinha visto.” (Marina Kariánova).
“E quando saímos de Minsk, vimos como ardia nossa escola. As
chamas subiam em todas as janelas. Tao vivas... Tão... Tão fortes, iam até o
céu... Nós soluçávamos porque nossa escola estava pegando fogo.” (Inna
Levkiévitch, dez anos, hoje arquiteta).
“Lembro que depois da guerra só tínhamos uma cartinha na
aldeia, é o primeiro livro que achei e li era uma reunião de exercícios de
aritmética. Li como se fosse poesia...” (Sacha Kávrus).
“Durante a guerra eu não tinha visto nenhum objeto infantil.
Havia esquecido que eles existiam em algum lugar. Os brinquedos de criança...”
(Volódia Tchistokliétov).
“Ele [o irmão] estava
com tanta fome que pedia para a mamãe: “Vamos cozinhar meu patinho”. O patinho
era o brinquedo preferido dele, antes disso não deixava ninguém pegar. Dormia
com ele.
Gritávamos: “Casinha, não queime! Casinha, não queime!” Não
tivemos tempo de tirar nada da casa, só peguei minha cartilha. Eu a salvei por
toda a guerra, protegi. Dormia com ela, sempre a deixava embaixo do meu
travesseiro. Queria muito estudar.” (Nina Ratchítskaia, sete anos).
No quinto capítulo da obra “Educação e emancipação”, intitulado
“Educação após Auschwitz”, o filósofo Theodor Adorno afirma que a exigência que
Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. Ela foi a
barbárie contra a qual se dirige toda a educação, pois a educação tem sentido
unicamente como educação dirigida a uma autorreflexão crítica. Nesse sentido,
como todo caráter forma-se na primeira infância, a educação precisa se
concentrar na primeira infância. O único poder efetivo contra o princípio de
Auschwitz seria a autonomia, o poder para a reflexão, a autodeterminação, e
não-participação. Todo o livro repleto de iluminações críticas quanto ao
processo educacional poderia ser sintetizado nesta fórmula: “a função da escola
é a desbarbarização da humanidade”.
Sem jamais perder de vista a catástrofe da Segunda Guerra
Mundial e o terror do Holocausto, Adorno procura resgatar a importância ética
do passado no presente para pensar a educação do futuro. “Tudo dependerá do
modo pelo qual o passado será referido no presente, se permanecemos no simples
remorso ou se resistimos ao horror”, ele insiste. “Naturalmente para isso será
necessária uma educação dos professores”, ele completa (2003, p. 20). A
lembrança deveria ser o ponto chave dos processos de ensino-aprendizagem, uma
vez que as novas gerações precisavam ser educadas para o não esquecimento. A
educação das novas gerações deveria se concentrar na educação infantil, pois
ali residiria a única possibilidade de criar novos seres humanos totalmente
preparados para evitar a experiência de guerra e do Holocausto.
Referências:
ADORNO, Theodor. Educação
e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única, Infância berlinense: 1900.
Edição e tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.