domingo, 9 de agosto de 2015

“ESTETIZAÇÃO DA POLÍTICA E POLITIZAÇÃO DA ARTE”: A ESTÉTICA DO FASCISMO NAS OBRAS DE WALTER BENJAMIN

Resumo: O artigo examina a ascensão do fascismo na Alemanha a partir da estética de Walter Benjamin e propõe, ao final, um diálogo com Ernst Bloch. O método visa escapar de interpretações meramente econômicas que supostamente explicam a chegada de Hitler ao poder. Procura-se um campo semântico mais vasto, dialético, como os conceitos utilizados por Benjamin de messianismo, alegoria e origem (ursprung). A “origem” é um protofenômeno no sentido teológico, quer seja ele o Paraíso ou o comunismo primitivo, uma idade edênica e igualitária na Terra. Literalmente são “saltos” para fora da continuidade histórica linear que rompem com o desenvolvimento meramente evolucionista da História. Com uma catástrofe iminente era necessário explodir o continuum da história.


Palavras-chave: Walter Benjamin, Dialética, Materialismo Histórico, Messianismo, Fascismo.


sexta-feira, 26 de junho de 2015

Amizade, um presente

A um amigo "ausente"

Meu amigo ausente
És mais presente
Do que imaginas.

Sinto sua doce presença
Na mais simples
Flor da bonina.

No vento atrevido
Que farfalha as folhas da amora
Sinto que me namoras.

Nos mais variados
Sabores do queijo Minas
A vontade de roubar teus beijos me domina.

No olhar de tesoura
Que corta o céu e a montanha
A vontade de te ter me entranha.

No toque macio
Das roupas de cama
Sinto que me amas.

Se és, assim, tão presente
Como, ainda, tens coragem
De te declarares ausente?

(Autora: N.L.A.C)

domingo, 21 de junho de 2015

Aforismos para a história de um jaleco

Durkheim pensou ter encontrado as formas elementares da religião no sistema totêmico. Foi contestado, mas em partes permanece correto. Objetos carregam a aura e em alguns casos, a própria personalidade. Um objeto único, sendo arte, mantém o valor de culto, disse Benjamin. Pode ser um jaleco um totem? Talvez. Uma representação, sem dúvida.

“Leiam-me devagar”, advertiu Nietzsche na Aurora. Pois, um aforismo jamais coincide com a verdade. Ou é uma meia verdade, ou uma verdade e meia. Proclamou Karl Kraus, mestre no estilo alegórico. Alegorias e aforismos são herméticos, escondem a verdade, decifrada apenas por aqueles que têm o espírito livre, de verdades.

Medicina era a quimera de mamãe, pobre coitada. Mas o branco, tal como entre os símbolos de Cruz e Souza penetrou no inconsciente. A pureza branca transformou-se em sangre pútrido, no açougue. Conhecemos Sífiso e sua maldição do eterno retorno, segundo Engels. Mas na ânsia de ser Prometeu e desafiar os deuses na terra e a servidão humana (ou seria o próprio Fausto? Oh dúvida) buscou a profana ciência. O vermelho púrpuro encontrou ressonância no vermelho socialista.

De linho e rosas brancas vais vestido,
Sonho virgem que cantas no meu peito!...
És do Luar o claro deus eleito,
Das estrelas puríssimas nascido.
 (Cruz e Souza)

O jaleco sujo de carne animal foi para o laboratório de anatomia humana. Não poderia haver lugar melhor para compreender a vida e a morte. Odor, formol. Tão materialista, não compreendia a alma e as formas. E ela chegou como um anjo branco, com os mesmos sonhos e desejos. “Demora eternamente, és tão bela”. Dividiu a história tal como Cristo ou a grande Revolução. Paz, pureza, virgem. Do romance ao drama homérico e ao soneto de despedida, de Vinicius, de dor, de saudade.   

 “Nessa altura despertará também a pobre verdade aqui contida, que um dia se picou na antiquada roca de fiar, quando, sem autorização para isso, quis tecer para si próprio, numa arrecadação cheia de talha velha, uma beca professoral.” (BENJAMIN).

É possível substituir o amor pela ciência ou pela política? Ciência como vocação, Weber adverte, também é preciso ter “paixão e devoção apaixonada a uma ‘causa’, ao deus ou ao demônio que a espera”. Livros e putas podem-se levar para cama. Livros e putas tem entre si, desde sempre, um amor infeliz. Livros e putas – notas de rodapé são para uns o que são, para outras, notas de dinheiro na mesa. (Rua de mão única, Benjamin).

Sedex. O jaleco se foi. Habitar outro corpo, com o mesmo calor de adolescente e ficou o vazio. Do realismo para o barroco. Marília sem Dirceu. Os livros e o vinho suplantam momentaneamente a alma vazia. Busca-se calor noutros panos, bocas, corpos... vazios. Utilitarismo econômico mata a vida. Bares cheios, almas vazias.


E para o ódio afogar e o ócio ir entretendo
Desses malditos que em silêncio vão morrendo.
Em seu remorso Deus o sono havia criado;
 O Homem o Vinho fez, do Sol filho sagrado!
  (Sainte-Beuve, Abel e Caim). Blasfêmia.

Nem o tempo messiânico preenche a parusia. Busca-se a ressurreição. Domou o destino pelas mãos, perdeu a felicidade entre os dedos.

Ainda é cedo. Vento no litoral. Pistas. Labirinto. Biografia. 

segunda-feira, 4 de maio de 2015

29-04-2015 O “CHOQUE” DE GESTÃO DE BETO RICHA

Sem a ideia de uma vida futura, seria difícil ao homem suportar a sua condição de escravo. Daí a importância do messianismo na história do patriarcado (Oswald de Andrade).

Na medida em que a humanidade desloca o sentido da história, do passado e presente, para um futuro indeterminado, quer seja o paraíso, a sociedade sem classes ou a crença ilimitada no progresso técnico, ela tende a negar o presente e as lutas da ordem do dia. Mesmo Marx, no Dezoito brumário fala em “poesia do futuro” e não em resgatar as energias atadas na tradição e na experiência. Trata-se de uma filosofia da história que, com Santo Agostinho ganhou fundamentação prática, é o processo de “esticar o círculo” da história grega e romana, o tempo do eterno retorno; a história desde Agostinho tem um sentido linear, um fim, uma meta, é escatológica, portanto. É a partir deste viés que os fatos ocorridos em Curitiba em 29-04-015 podem ser compreendidos profundamente e não apenas em essência. Na medida em que o governador Beto Richa começa a implantar seu projeto de desestatização, a engenharia do estado mínimo neoliberal, ele ameaça a própria noção de futuro da classe trabalhadora, de esperança. Reside aí um grande risco ao operariado, mas também o seu revés, a união de toda a classe em uníssono, pois o messias moderno não vem como redentor dos céus, ele é a própria humanidade redimida enquanto coletividade (LÖWY, 2005).   
É compreensível a busca de esperança no futuro. Walter Benjamin (1994), outro autor messiânico, no ensaio “Experiência e pobreza”, afirma que “nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadoras que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, e experiência moral pelos governantes”. A esta última frase poderíamos acrescentar “experiência imoral dos governantes”. Pois bem, é a partir desta crise da modernidade, de tradições, experiência, da capacidade de narrar que, pode-se dizer, a classe trabalhadora perdeu sua capacidade de odiar, de luta, de orgulho. Engels, em Condição da classe trabalhadora na Inglaterra, narra o enfrentamento aberto de proletários com burgueses durante a Revolução Industrial. Edward Thompson, em Costumes em comum, descreve as formas sutis e engenhosas dos trabalhadores “persuadirem” os patrões por melhores condições de trabalho, com cartas de ameaças ou mesmo atentados. George Rudé, em A multidão na história, demonstra como os motins foram eficazes na regulação do preço do pão e (pasme) até do dizimo da paróquia. Auguste Blanqui deixou um espectro de temor entre os franceses durante todo o século XIX e a Comuna de Paris marcou a primeira grande experiência de autogestão da classe trabalhadora, fenômeno que Marx descreveu como “um assalto aos céus”!
Mas com o “avanço” técnico e a ilusão do progresso a classe trabalhadora perdeu sua capacidade de odiar, de crítica; com as migalhas trabalhistas tornou-se passiva; com a social democracia que provoca miopia avançada, tornou-se iludida no sonho de aburguesar-se. Ao deslocar o eixo temporal histórico do passado para o futuro (KOSELLECK, 2009), o proletariado (incluso aí os professores, jamais nos esqueçamos disso) não mais retira suas energias da tradição, mas da esperança; dos descendentes libertados e não dos antepassados escravizados. Portanto temos nossa parcela de culpa nos eventos supracitados, o governador Beto Richa é apenas o operador da “mão invisível do mercado”.
Dito isto, vou descrever factualmente os três dias de batalha em Curitiba e, ao final, retornar à tese inicial e expor a verdadeira motivação, o projeto neoliberal enfim posto em prática no fatídico 29-04. Saímos de Maringá na noite de segunda (27-04), num ônibus fretado pelo sindicado dos servidores da UEM. Entre os presentes estavam alunos de diversos cursos, servidores e sindicalistas, jovens de dezoito anos e senhores de 60. Chegamos na manhã de terça na capital e montamos acampamento na praça em frente à Assembléia, no centro cívico de Curitiba. Havia, de antemão, um clima bastante tenso, pois soubemos que naquela madrugada os carros de som do sindicato de professores foram guinchados à força pela tropa de choque da PM e os poucos que resistiram à investida na calada da noite foram reprimidos com truculência e gás de pimenta.
Na tarde de terça o projeto de lei número 252-2015 passou pela análise de comissão e justiça e o revisor pediu prazo de 24 horas para entregar o documento final para votação dos deputados. Portanto sabíamos que a votação seria na quarta-feira dia 29-04. Mas naquela tarde, a tentativa do sindicato em colocar um carro de som no espaço público do centro cívico causou alvoroço dos PMs e mobilização da tropa de choque para impedir seu acesso. Diversas viaturas cercaram as entradas possíveis e inevitavelmente houve o primeiro atrito. O nervosismo dos policiais, o clima de guerra, já davam mostras do que seria de fato o massacre do dia seguinte. Apenas com grande mobilização, um jogo de paciência, de centímetro em centímetro é que foi possível encaminhar o caminhão no interior de um local público, não sem sentir os efeitos de gás lacrimogêneo. Foi o ensaio geral para a quarta-feira. Convém notar que a própria instalação de banheiros químicos foi vetada no local.
Após o entrevero uma aparente boa notícia parecia por fim às expectativas iminentes de confronto. Os advogados do sindicato conseguiram uma liminar (em foto) que permitia a entrada dos manifestantes (conforme a capacidade da casa, cerca de 400 pessoas). Se o Sr. deputado Traiano e o judiciário paranaense corrompidos pelo Richa tivessem aceito o documento, provavelmente toda a barbárie do dia seguinte teria sido evitada, ao menos fora da Assembléia. Mas não, ele foi cassado de um dia para o outro, numa rapidez pouco habitual em se tratando do judiciário...
A praça de guerra. Antes de descrever o caos e a barbárie promovidos pelo secretário Francischini é coerente analisar a estratégia de “defesa” da Alep. Seguramente o cerco ao prédio foi planejado por semanas, uma organização militar de bloqueio e isolamento de perímetro visto somente em guerras. Haviam três barreiras humanas, a primeira formada por soldados e jovens cadetes, estes evitaram ao máximo agressões e o conflito. Logo atrás dos milhares de PMs estavam os militares mais preparados, o choque e a rotan, às centenas, lembravam os pretorianos romanos protegidos por armaduras, escudos e um blindado com canhões de água. A terceira e última barreira a ser vencida estava postada logo na rampa de entrada do prédio, dezenas de cães, alvoroçados e tão raivosos quanto o próprio secretário de “segurança”. O ataque ao cinegrafista da Band deu mostras do que poderia ter ocorrido caso rompêssemos o front. Até o teto dos edifícios estava guarnecido e um helicóptero dava apoio tático do deslocamento das massas para melhor direcionamento do Choque, além de despejar bombas de gás lacrimogêneo.
Às 14:30 da quarta-feira, após vencidas todas as tentativas diplomáticas para o acesso à votação e concomitante ao início da sessão o inevitável embate teve início com a tentativa de romper o cerco policial. A repressão foi inversamente proporcional ao avanço dos professores, desorganizados, numa frente única que facilitou o bloqueio. Não havia tática entre os servidores, apenas vontade e bravura rapidamente dispersada pelas bombas de efeito moral, balas de borracha e gás lacrimogêneo. O gás lacrimogêneo (cloroacetofenona) é considerado “a mais humana” das armas químicas, empregado desde a Primeira Guerra Mundial, afeta as mucosas do rosto (olhos, nariz e boca); é impossível manter-se mais de trinta segundos sob efeito do gás, a respiração é bloqueada, as lágrimas são estimuladas ao máximo e, em casos extremos pode provocar taquicardia. Os mais velhos foram afetados gravemente, com desmaios e até convulsões.
O conceito de batalha ou confronto pressupõe igualdade de forças no embate, o que não houve, foi um massacre. A tropa de choque dispersou a massa e isolou os organizadores na retaguarda em frente à prefeitura, há cerca de 200 metros da assembléia, onde os feridos eram levados e atendidos. A entrada de ambulância, a mais elementar condição de humanidade, também foi proibida. Durante duas horas, ininterruptamente as bombas e os tiros não cessaram. Sabemos que os apelos de clemência da esfera federal foram recusados pelo governo. Mesmo a comissão de senadores que veio a Curitiba na tentativa de pacificação teve sua atuação nula e impotente. A votação ocorreria a qualquer preço e ocorreu.
A história se repetiu. Em 1912 um coronel belicista como pretensões políticas em Curitiba, chamado João Gualberto, levou cordas e uma metralhadora para trazer o monge José Maria e os rebeldes do Contestado amarrados ou mortos a capital do estado. Os ferozes caboclos do Paraná, no entanto, resistiram, a metralhadora falhou e no combate à arma branca o coronel acabou morto pelos revoltosos. Para os desavisados, Gualberto ainda é o patrono da polícia militar do Paraná, mas já tem um concorrente a altura, o secretário Francischini. Naquela ocasião o messianismo uniu todos os revoltosos, a expectativa de ressurreição do Monge José Maria e o retorno de um exército encantado mantiveram a luta dos caboclos pela manutenção de seus direitos tradicionais, alheado a eles pela nova ordem capitalista e a monetarização da terra. Resistiram bravamente por mais três anos contra não apenas a polícia e milícias estaduais, mas contra a metade dos efetivos do exército de então, cerca de seis mil soldados, aviação e modernos armamentos de guerra.
A irmandade dos rebeldes do Contestado pode nos deixar algumas lições: ainda tinham a seu favor todo o fervor da experiência, que nós perdemos. Tinham a fé nas tradições, que trocamos pelo comodismo das telas de led e a revolução dos smarth fones. Em síntese, vale a máxima de Walter Benjamin, de que todo documento de cultura é também um documento de barbárie. A evolução da técnica traz consigo um índice avesso, o retrocesso da sociedade. Contudo, a experiência de choque sofrida pelos professores no “dia das lamentações” pode ser uma data emblemática. A virada de mesa, a tomada de consciência de que os professores fazem parte de uma forma muito peculiar de sacerdócio. A história do sacerdócio caracteriza-se como fonte do que Friedrich Nietzsche havia de chamar a Moral de Escravos. Nos velhos livros religiosos, verifica-se uma coincidência de ordenações, princípios e máximas que poderiam constituir a Cartilha do Escravo Perfeito.
O sacerdote foi muitas vezes o legislador, outras vezes, através de augúrios e oráculos, presidiu a paz como ordenou a guerra. Sacerdócio quer dizer ócio consagrado aos deuses. O ócio não é esse pecado que farisaicamente se aponta como a mãe de todos os vícios. Ao contrário, Aristóteles atribui o progresso das ciências no Egito ao ócio concedido aos pesquisadores e aos homens de pensamento e de estudo. A palavra ócio em grego é sxolé, donde se deriva escola. É o que nos ensina o filósofo e escritor modernista Oswald de Andrade.
Somente o sacerdócio é capaz de deter o programa de governo do Richa, o “choque” de gestão, finalmente posto em prática no dia 29-04. Não se trata de mera analogia entre o neoliberalismo e a tropa de choque (teoria e prática), mas de um plano de governo que somente agora, sublimado pelo gás lacrimogêneo, toma forma. Este foi apenas o primeiro round, o primeiro golpe contra a classe trabalhadora. Primeiro furta-se o fundo de previdência que mantém a liquidez do serviço público do estado, trata-se de um jogo de xadrez. O segundo golpe é novamente zerar os cofres, falir literalmente o serviço público, saúde, educação (à exceção da segurança, que dá sustentabilidade aos negócios burgueses, John Locke já o dizia). E a “única” opção, finalmente é vender todo o patrimônio estatal, as universidades serão o primeiro alvo. E enfim, voi-a-lá, a iniciativa privada entra em cena como o derradeiro salvador do capital. Xeque mate!
Não seria exagero equiparar o projeto do governo Richa com o laboratório executado no Chile de Pinochet e levado à exaustão por Margareth Thatcher na Inglaterra. Estranhamente o governador uniu o liberalismo excludente com as oligarquias do interior, a família Barros. Onde o governo federal combate a crise com remédios keynesianos, Richa investe na austeridade. No lugar dos estímulos à economia, aumento de impostos. Onde há desoneração da cesta básica, o Paraná aumenta o ICMS. É um governo que cumpre a risca cartilha neoliberal e o rolo compressor, a política de choque, apenas começou a sair do papel. Deter este processo é a função de todos nós.  
Leandro Konder, no belo livro “O marxismo na batalha da ideias”, comparou a História metaforicamente à escada rolante, pois certamente ela tem um sentido, um ritmo, uma direção determinada. Mas cabe ao homem ou a humanidade o processo de estacionar na escada rolante, descer ou acelerar o passo. Contudo, ainda assim ela continua no seu ritmo. A analogia é interessante para pensar as condições econômicas e sociais da conjuntura conservadora em que vivemos, um retrocesso inimaginável desde 1964. A greve geral é uma arma, está na modernidade como o mito de Josué no Antigo Testamento, isto é, a tentativa de parar o tempo, de deter um desenvolvimento catastrófico. “O mundo de ponta cabeça”, título célebre de Christopher Hill é também uma citação bíblica que denota a ação humana, terrena, capaz de mudar o curso da história.  

Referências:
ANDRADE, Oswald de. A crise da filosofia messiânica. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
KONDER, Leandro. O marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio, uma leitura das teses sobre o conceito de História. Tradução de Wanda Nogueira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005.

MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. Tradução Nélio Schneider; prólogo Herbert Marcuse. São Paulo: Boitempo, 2011.

segunda-feira, 30 de março de 2015

A hora das crianças, Walter Benjamin

BENJAMIN, Walter. A hora das crianças. Tradução Aldo Medeiros. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2015.

Introdução:
A intelligentsia antropofágica brasileira está consumindo a produção benjaminiana na última década assim como o fizera com Thompson, há vinte anos ou menos, e com Gramsci e Lukács nas décadas de 1980 e anteriormente. Não há nenhum empecilho nesta apropriação, desde que ela não seja concebida como fetichismo do próprio autor, como aponta a recente entrevista de uma das especialistas na obra de Walter Benjamin no Brasil, Jeanne Marie Gagnebin. Lembremos que Benjamin foi crítico da própria academia alemã quando teve sua Tese de livre docência ou Habilitation recusada pela Universidade de Frankfurt em 1925 – seguramente uma das maiores obras da filosofia no século XX . “O meu livro Origem do drama trágico alemão[1] é a prova provada da distância que separa a observação rigorosa dos métodos de investigação acadêmica mais autênticos do atual modo de estar do meio científico idealista-burguês: nem um universitário alemão lhe dedicou uma crítica”, queixou-se ao amigo Gershon Scholem, em carta.
A ironia é que Theodor Adorno recebeu a Habilitation em filosofia na mesma universidade que recusara a tese benjaminina. Ele cita em sua aula inaugural, repetidas vezes e com destaque ao livro de Benjamin. No verão de 1932, Adorno orientou um seminário sobre a Origem do drama barroco alemão. Naturalmente o livro sobre o Drama barroco alemão não é o objeto desta resenha, ele permanece até os dias de hoje obscuro em certos aspectos e inacessível em outros, pela sua linguagem hermética, cheia de alegorias e aforismos. Mesmo Hannah Arendt – conhecedora em detalhes da filosofia benjaminiana – define a obra como um livro maldito. Mas o que se propõe com esta introdução é analisar a recente obra traduzida ao português como parte integrante do pensamento de Benjamin, onde surgem didaticamente conceitos complexos, como a aproximação de materialismo histórico e messianismo, a crítica à concepção de tempo vazia e homogênea, meramente evolucionista da social-democracia alemã, à noção de progresso positivista, concepção que – conforme Benjamin – produziu uma avaliação equivocada do Fascismo e a impotência em deter a ascensão de Hitler.  
Os vinte e nove pequenos textos, redigidos em forma palestras radiofônicas, foram traduzidos diretamente das obras completas de Walter Benjamin em alemão, organizadas por Rolf Tiedermann. Foram escritas e narradas pelo próprio Benjamin entre os anos de 1927 e 1932, apresentados em duas rádios alemãs, em programas com cerca de vinte minutos de duração. Mas a pergunta que deve ser feita antes da análise o livro é por que Benjamin se interessou pela cultura infantil e juvenil num período catastrófico na Alemanha, de crises econômicas e de tensões políticas com a escalada nazista? Essa questão não é muito simples de ser elucidada, mas no final uma hipótese será esboçada. Nesse momento basta dizer que naquela época Benjamin passava por uma grave crise financeira, assim como a maioria da população alemã, e o rádio recém inaugurado naquele país poderia ser uma fonte de renda extra. Esta resposta parcial é insatisfatória, pois conhecemos o engajamento de Benjamin e sua crítica aos historicistas e a sua isenção despretensiosa, disfarçada com a erudição cansativa. A resposta, portanto, só pode ser evidenciada após um exame detalhado do livro.
O autor e a obra:
Sabe-se que Benjamin foi um dos mais eminentes pensadores do século XX, filósofo por formação, tradutor dos poemas de Baudelaire, historiador da cultura e em certo sentido também foi também teólogo. Mas poucos estudiosos legaram devida atenção ao seu perfil de brilhante... pedagogo. O leitor menos familiarizado com a obra benjaminiana certamente recebeu com surpresa a recente publicação. Mas isto não é novidade, pois Benjamin foi colecionador de livros infantis e brinquedos artesanais. Nas Obras escolhidas vol. 1, há três artigos sobre a história cultural do brinquedo e livros infantis; ocorre que esses pequenos textos - que fecham o livro – foram sublimados por trabalhos de maior vigor e repercussão, como as famosas “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” e as “Teses sobre o conceito de história”, entre outros ensaios monumentais.  
Uma resenha do livro de Karl Gröber, chamado “Brinquedos infantis dos velhos tempos”, é particularmente significativa para se pensar a História cultural do brinquedo. No limiar do século XX havia uma dissonância entre o artesanal e o industrial e, segundo Benjamin (1994, p. 246), “uma nostalgia genuína: o desejo de recuperar o contato com um mundo primitivo, com o estilo de uma indústria artesanal que, no entanto, justamente nessa época (...) travava uma luta cada vez mais desesperada por sua sobrevivência”. A perda da experiência do qual fala Benjamin na era industrial, ou perda da aura,[2] também se reflete na criança.  
Para Walter Benjamin (1994, p. 253), “é a brincadeira, e nada mais, que está na origem de todos os hábitos”. Pois “o adulto alivia seu coração do medo e goza duplamente sua felicidade quando narra sua experiência. A criança recria essa experiência, começa sempre tudo de novo, desde o início”. Este “começar de novo”, a repetição que ocorre em toda brincadeira infantil, é o ponto de partida para a análise de A hora das crianças.
Rita Ribes Pereira, uma das organizadoras da edição, tem razão quando afirma que os textos radiofônicos de Benjamin apresentam de forma “miniaturizada” os grandes temas que perpassam sua produção intelectual, isto é, a junção de magia e técnica, arte e política, cultura e barbárie. Conceitos aparentemente contraditórios e antitéticos, mas que conservam em Benjamin uma “reversibilidade recíproca” entre teologia e política, da qual fala Michael Löwy. Esta aproximação pode ser observada numa alegoria nas notas preparatórias para as Teses sobre o conceito de história: “Meu pensamento se comporta em relação à teologia como o mata-borrão em relação à tinta. Ele está todo impregnado dela. Mas se fosse ocorrer segundo o mata-borrão, aí não sobraria nenhum resto do que está escrito” (BENJAMIN, 2012, p.181). Essa relação é evidente desde a estética do fascismo em Benjamin,[3] até na análise de temas aparentemente corriqueiros como uma pintura rupestre do período paleolítico, descrito como “um instrumento de magia”, ou um chocalho de recém-nascido é analisado não apenas como um brinquedo para estimular a audição, o primeiro sentido a ser excitado, mas como um instrumento “para afastar os maus espíritos” (BENJAMIN, 1994, p. 173; 250).
Imaginemos o deleite ao ligar o rádio e ouvir Benjamin, numa narrativa clara, objetiva, rica em detalhes e fontes e com um roteiro que lembra o clímax teatral ou de um romance. Benjamin é um autêntico narrador e descreve os temas da cultura alemã com tal propriedade que, pode-se dizer, cada palestra e vinte e cinco minutos é uma aula erudita. É certo que a maioria dos temas surge na produção benjaminiana destinada aos adultos, mas são adaptados às crianças com um primor didático e pedagógico raros. No geral, o livro se divide em três eixos temáticos, são eles: a dialética entre a tradição e o mundo moderno, onde Benjamin compara o dialeto berlinense, o comércio e as feiras de rua na Berlim antiga e moderna, o tradicional teatro de marionetes, os parques da cidade (que também estão presentes em obras como “Infância berlinense”, “Imagens do Pensamento”, e “Rua de mão única”.
A segunda parte na qual pode-se dividir a obra está relacionada à literatura e a cultura alemã daquele período. A crítica literária está no centro de toda sua produção sobre a arte, desde a tese de doutoramento sobre o Romantismo alemão, uma monografia em torno de Schlegel e Novalis, até nos ensaios sobre os escritores Marcel Proust, Franz Kafka, Nicolai Leskov e Charles Baudelaire, além é claro de uma biografia de Goethe e um ensaio sobre suas Afinidades eletivas. De fato, o pequeno texto intitulado Doutor Fausto é uma miniatura do clássico de Goethe, em linguagem apropriada ao público juvenil. A literatura fantástica, os contos de horror, que tanto seduziram Benjamin, estão contidos em A Berlim demoníaca, uma descrição tão próxima do original (do escritor E.T.A. Hoffmann) que faz o leitor com maior sensibilidade sentir arrepios (imagine-se o ouvinte). Outros temas típicos da cultura berlinense surgem nos mistérios de Caspar Hauser, na história dos ciganos e na prática dos bandoleiros na antiga Alemanha.
Mas o objeto das narrativas de Benjamin não é apenas a cultura erudita, pelo contrário. O popular ocupa lugar de destaque no livro, assim como o grotesco, as formas que as coisas caídas no esquecimento assumem, elas estão deformadas. Essa preocupação com a arte popular reapareceu posteriormente num ensaio sobre o historiador e colecionador Eduard Fuchs, pioneiro na utilização de fontes alternativas ou pouco ortodoxas, como a caricatura e o erotismo, na análise da sociedade burguesa europeia após 1848. O grotesco aparece como “a mais elevada potenciação da imaginação sensível”. Há uma clara preocupação em intercalar a cultura “superior” e aquela das classes populares, entre Goethe e Theodor Fontane há narrativas sobre a Borsig (então a maior indústria alemã) e uma visita à fábrica de latão, numa descrição tão sublime que por alguns instantes somos levados no tempo e no espaço para os corredores quentes e barulhentos da Alemanha de Weimar. Da mesma forma, na descrição de Nápoles, pode-se sentir o estranhamento de Benjamin pelas ruas desorganizadas daquela cidade e o odor dos produtos frescos no mercado.  
Pedagogicamente é possível apreender alguns conceitos nesse ínterim cultural. Na etimologia da palavra, pedagogia significa “ensinar às crianças”, mas como ensinar? Imaginemos começar uma aula sobre os Processos contra as bruxas com a introdução da história de João e Maria e a desconstrução da imagem pejorativa que as bruxas herdaram da Idade Média. Aparentemente uma análise inocente, o texto mescla os processos da inquisição e o famoso Malleus Meleficarum (O martelo das feiticeiras) como manual para descobrir e punir os hereges. Mas se vocês quiserem um esboço rápido, de certo modo uma introdução à vida das bruxas – diz Benjamin – “então vocês devem se dedicar à leitura da peça ‘Macbeth’, de Shakespeare”.  Num sentido semelhante, a narrativa sobre a queda da Bastilha, a antiga prisão nacional da França, além de fazer toda a cronologia da famosa fortaleza para presos políticos, Benjamin descreve documentalmente as curiosas formas de comunicação que os prisioneiros inventavam, até as lendas do homem da máscara de ferro. Com notoriedade Benjamin (2015, p. 99) conclui que “as crianças querem evidentemente conhecer tudo. E se os adultos só mostram a elas o lado bem comportado e correto da vida, elas logo vão querer conhecer o outro lado por si mesmas”.
 Por fim, o terceiro e último eixo temático representa ao mesmo tempo um enigma e a chave para compreensão da motivação de Benjamin em falar ao público infantil. As últimas dez narrativas radiofônicas abordam temas distintos dos anteriores, repentinamente. Dois textos rompem com a tradição cultural e os costumes alemães, são eles Cagliostro – um conhecido charlatão e vigarista europeu do século XVIII –, e As fraudes em filatelia, ou as falsificações entre os colecionadores de selos. Lembremos que a interrupção não é algo que ocorre a esmo na filosofia benjaminiana, ela tem um objetivo, assim como as pausas ou cesura no teatro de Brecht. Oposta à concepção estritamente quantitativa da temporalidade, que percebe o movimento da história como um continuum de aperfeiçoamento constante, de evolução irreversível, da acumulação crescente, da modernização cujo motor reside no progresso científico, técnico e industrial, em suma como contraponto ao paradigma do progresso, Benjamin valoriza as rupturas, o descontínuo, através do conceito de “origem”.[4] A “origem” é um protofenômeno no sentido teológico, quer seja ele o Paraíso ou o comunismo primitivo, uma idade edênica e igualitária na Terra. Literalmente são “saltos” para fora da continuidade histórica linear que rompem com o desenvolvimento meramente evolucionista da História. Voltaremos ao conceito de “origem” ao final.
Na sequência aos textos sobre vigarices e fraudes, Benjamin parece anunciar uma catástrofe com as narrativas sobre “A destruição de Herculano e Pompeia, O terremoto de Lisboa, O incêndio do teatro de Cantão, O desastre ferroviário da ponte do Rio Tay, A enchente do rio Mississipi em 1927” e conclui com as curiosas “Histórias reais sobre cães”, onde expõe a sensibilidade e o instinto do animal para reconhecer caráter, para aprender, e até para prever “terremotos”, antes mesmo dos sismógrafos. Esses textos possuem uma conexão e um objetivo e podem ser compreendidas desde que o método benjaminiano seja desvendado.
No final da década de 1920 a problemática do fascismo às portas do poder ganha destaque nas obras de Benjamin. Para romper com a reificação do moderno trabalhador industrial, com a crença ilimitada no progresso da técnica, com a concepção de tempo linear, homogêneo e vazio, para “mobiliar para a revolução as energias da embriaguês”, Benjamin desenvolve o conceito de “interrupção messiânica”. É esse conceito de interrupção da história, associando luta de classes e teologia (marxismo e messianismo), também definido como cesura, que interliga toda sua produção intelectual. Era necessário explodir o continuum da história, afinal
(...) se a eliminação da burguesia não estiver efetuada até um momento quase calculável do desenvolvimento econômico e técnico (a inflação e a guerra de gases o assinalam), tudo estará perdido. Antes que a centelha chegue à dinamite, é preciso que o pavio que queima seja cortado (BENJAMIN, 1995, p. 46).

O texto acima pertence ao aforismo intitulado “Aviso de incêndio”, presente em Rua de mão única, de 1928. O método alegórico privilegia o uso de imagens, como ocorre no livro das Passagens. “A alegoria jamais coincide com a verdade; ou é uma meia verdade ou uma verdade e meia”, segundo o mestre nesse estilo literário, Karl Kraus. O fragmento é uma das primeiras formulações do que Michael Löwy chama de “crítica teológica” ao tempo mecânico, e constitui um dos fundamentos filosóficos de sua rejeição às ideologias do progresso. Para Walter Benjamin, não se pode pensar nenhum acontecimento empírico isolado que não tenha uma relação necessária com a constelação temporal específica em que acontece. Mas o tempo da história é diferente do tempo da mecânica, ele pondera. O tempo dos calendários ou dos ponteiros do relógio não contém o que ele chama de “tempo preenchido”, pois são mecanicamente ascendentes, quantitativos, em detrimento do tempo vivido, ou da experiência. “A esta ideia do tempo preenchido chama-se na Bíblia – e esta é a sua ideia histórica dominante – o tempo messiânico” (BENJAMIN, 2011, p. 262).  
Esta ideia de interrupção pode ser melhor compreendida em sintonia com o conceito de “origem” (ursprung): “O que é próprio da origem [e não gênese] nunca se dá a ver no plano factual, cru e manifesto. O seu ritmo só se revela a um ponto de vista duplo. A origem (...) tem a ver com a pré e pós-história dos fatos” (BENJAMIN, 2011, p. 34). O conceito de “origem” é certamente bastante complexo e obscuro. Segundo filósofo Romero Freitas, um dos especialistas na obra de Walter Benjamin no Brasil, uma estratégia interessante é entendê-lo como uma espécie de “estrutura” histórica, algo como uma ideia platônica, porém historicizado, ou seja, a ideia em Benjamin não é uma mera representação do espírito, mas possui uma realidade sensível. Para o filósofo da Unicamp Márcio Seligmann-Silva (2008), ursprung – literalmente proto-salto – significa saltar e fazer pontes entre fragmentos da redenção, isto é, uma rememoração do evento original que se transforma em tradição cultural. Jeanne Marie Gagnebin (1999, p. 10) reitera que ursprung designa a origem como salto [Sprung] para fora da sucessão cronológica niveladora e linear tradicional; pelo seu surgir a origem quebra a linha do tempo.
Uma vez compreendido o método benjaminiano, sobretudo o conceito de “origem”, pode-se pensar numa hipótese para suas motivações em falar ao público juvenil. Os textos catastróficos que predominam na terceira parte do livro parecem anunciar o próprio Apocalipse, com a chegada de Hitler ao poder. Antes destes “terremotos”, surgem deliberadamente os artigos sobre trapaceiros, charlatães, falsificadores (Cagliostro); é como se Benjamin construísse, em forma de aforismos, a imagem de um impostor e a impotência em deter sua ascensão. A imagem alegórica dos cães, que surgem em pelo menos três textos, evidencia a perda da percepção na era moderna, com a experiência de choque com as guerras e imorais com os políticos. Lembremos da influência freudiana em Benjamin, mas não a mera reprodução do inconsciente pulsional, pelo contrário, ele busca resgatar o inconsciente óptico, tátil, perceptivo, como demonstra o livro de Sérgio Paulo Rouanet sobre os itinerários freudianos em Walter Benjamin, bem intitulado Édipo e o Anjo.  
Em suma, boa parte das narrativas infantis sintetiza o centro da filosofia benjaminiana, desenvolvida no ensaio sobre Eduard Fuchs e nas Teses sobre o conceito de história. O conceito de que todo documento de cultura é também um documento de barbárie. Ele sabia do fracasso iminente em deter os nazistas: “Nossa geração teve de pagar para saber, pois a única imagem que irá deixar é a de uma geração vencida. Será este o seu legado aos que virão” (Teses). As crianças representam assim a esperança; suas tradições e cultura sintonizam a vontade utópica, na qual o sonho primordial e a “luz do futuro” se fundem.



[1] Trauerspiel deveria traduzir-se, literalmente, por “drama lutuoso”, que não corresponde a nenhuma designação do gênero em português. Optei por “drama trágico” para fugir à tradução, comum em línguas românticas, de “drama barroco” que não está no termo original nem designa também nenhum gênero dramático particular (nota do tradutor João Barrento). Neste texto utiliza-se o termo “drama trágico”, seguindo as explicações de Barrento; contudo, alguns autores ainda fazem uso do termo drama barroco, e outros preferem não traduzi-lo, mantendo o termo em alemão: “Origem do trauerspiel alemão”.

[2]  Relacionado à arte, o conceito de aura visa estabelecer a distinção entre a reprodução tradicional da obra de arte e sua reprodução técnica. É no “aqui-e-agora” do original que consiste sua autenticidade, originalidade e inacessibilidade.
[3] Benjamin (2013, p. 163) vê a ascensão do fascismo na Alemanha não apenas em termos políticos ou econômicos: em sua “Crônica dos desempregados alemães”, afirma que o fascismo “é algo como sua imagem inversa, o aparecimento do anticristo. Como se sabe, este arremeda a bênção que foi anunciada como messiânica. Assim sendo, o Terceiro Reich arremeda o socialismo”.
[4] “A origem não é só ‘Entstehung’ (um surgimento, um nascimento milagroso), mas sobretudo, ‘Ursprung’ (momento original que sempre se renova). Daí a frase misteriosa de Walter Benjamin: ‘Ursprung ist der Ziel’ (A origem é o alvo); ou para citar Ernst Bloch “A Gênese é o fim”.

Referências bibliográficas:
BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no Romantismo Alemão. Tradução e prefácio de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuas, 1993.
_____. Magia, técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura; tradução Sergio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1994.
_____. Rua de mão única. Obras escolhidas volume 2. São Paulo: Brasiliense, 1995.
_____. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas volume 3. São Paulo: Brasiliense, 1996.
_____. Passagens. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2009.
_____. Ensaios Reunidos: escritos sobre Goethe. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2009.
_____. Origem do drama trágico alemão. Edição e tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autentica, 2011.
_____. O capitalismo como religião. Organização Michael Löwy; tradução Nélio Schneider, Renato Pompeu. São Paulo: Boitempo, 2013.
_____. O anjo da história. Organização e tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
_____. Imagens do pensamento, sobre o haxixe e outras drogas. Edição e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
_____. A hora das crianças (narrativas radiofônica). Tradução Aldo Medeiros. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2015.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

CRÔNICA DE UM ESTADO SEM FUTURO

Um autor clássico afirmou que a “história é a mestra da vida” (magistra vitae). O espelho dos vícios e virtudes da humanidade, no qual se pode “aprender” pela experiência. Na era contemporânea, porém, tal postulado perde seu sentido pedagógico. “O que a experiência e a história nos ensinam é que os povos e os governos jamais aprenderam algo a partir da história, assim como jamais agiram segundo os ensinamentos que dela foram extraídos”, disse o filósofo idealista Hegel.
A nova história adquiriu uma qualidade temporal própria. Diferentes tempos e períodos de experiência, passíveis de alternância, tomaram o lugar outrora reservado ao passado entendido como exemplo. Advento de um novo tempo que se inicia. “Desde que o passado deixou de lançar luz sobre o futuro, o espírito humano erra nas trevas, disse Tocqueville. A velha história teve de renunciar a pretensão de ser mestra da vida.
Esta mudança radical ocorre nos séculos XVIII e XIX, onde o Estado e a Igreja detém o monopólio da previsão do futuro, ora como imagem idealizada do progresso, ora como salvação fora do mundo material, respectivamente. A crescente secularização do sagrado opõe frontalmente duas concepções e visões de mundo e a noção de temporalidade histórica.  José Carlos Reis (1994) afirma que houve uma “revolução epistemológica” quanto ao conceito de tempo histórico, uma mudança substancial. A primeira grande mudança foi produzida pela religião ao romper com o mito – a religião opôs a profecia ao ritual, a salvação futura contra a salvação na origem. A segunda foi realizada pela filosofia do século XVIII, ao romper com a religião – a filosofia opôs a utopia à escatologia, a demonstração racional à fé em uma profecia, um futuro humano, temporal, histórico, ao futuro divino, meta-histórico, eterno. Às utopias uniu-se a ideologia do progresso.
Na perspectiva de José Carlos Reis (2006, p. 30) “êxtase profano (utopia) venceu o êxtase religioso (parusia) da outra vida eterna. O futuro não é mais o fim do mundo. Agora, a espera é outra: a realização da história, do progresso, como obra dos homens, que se tornaram competidores de Deus na criação do mundo”. Ao reprimir as previsões apocalípticas e astrológicas, o Estado apropriou-se à força do monopólio da manipulação do futuro, afirma o renomado historiador alemão Reinhart Koselleck, num clássico sobre a semântica das temporalidades na História.
“O progresso descortina um futuro capaz de ultrapassar o espaço de tempo e da experiência tradicional, natural (...). Pois o tempo que se acelera em si mesmo, isto é, a nossa própria história, abrevia os campos da experiência, rouba-lhes sua continuidade, pondo repentinamente em cena mais material desconhecido, escapa em direção ao não experimentável”, completa Koselleck (2010, p. 36). Com essa constatação, temos uma guinada dramática e completa no que se refere à capacidade de expressão de nosso topos – historia magistra vitae. Não se pode mais esperar conselho a partir do passado, mas sim apenas de um futuro que está por se constituir.
A crise de experiência atual já foi objeto de analise de eminentes pensadores como Max Weber (desencantamento de mundo), Walter Benjamin (o progresso como catástrofe) e Ernst Bloch (a esperança e a utopia num futuro desejável). Bloch, o filósofo marxista das utopias concretas, debruçou-se sobre a questão do porvir, do omega, do amanhã. Realizou uma enciclopédia dos sonhos e esperanças (O principio esperança) em três volumes, no qual investiga as potencialidades ontológicas do homem (esperança, fé, angústia e medo). Esperança e fé se estendem ao aspecto desejante de uma vida melhor; formam-se sonhos diurnos, acordados. Em última instância a esperança vence o niilismo e a resignação, pois é um trata-se de um afeto prático, militante.
Entre a experiência no passado e a expectativa no porvir ocorre o conhecimento histórico. Ora, se perdemos a capacidade de retirar da história seu conteúdo explosivo (Marx fala em “Poesia do futuro”, no Dezoito Brumário de Luis Bonaparte), é do futuro que surgem as esperanças, nos descendentes e não dos antepassados. Ocorre que há nisto outra grande problemática, a excepcional capacidade dos governos neoliberais de frustrar o futuro, de desencadear o medo no amanhã (vemos inúmeros casos de suicídio na Espanha e Grécia pela ausência do dia seguinte, da aposentadoria, do emprego; fé apenas na humilhação, na fome, e no descaso).
No Paraná o governador Beto Richa age desta forma, como um cavaleiro do Apocalipse a serviço do capital. Ele tentou com um só golpe restringir o futuro do Estado, das aposentadorias e direitos trabalhistas divinamente conquistados. Por conta de uma força de resistência dos professores, está temporariamente engessado. Mas o inimigo não cessa em vencer. Da esperança no futuro e não da experiência no passado os professores precisam retirar uma lição: que sua profissão não deve ser meramente contemplativa, como a classe média covarde, deve ser militante, agir na sociedade para que equívocos como os partidos neoliberais tucanos não mais sejam eleitos. É preciso exercer um sacerdócio e não apenas uma profissão. Escrevo como profeta e não como historiador, pois o profeta viu melhor o futuro que o historiador o passado.

“A situação desesperadora da época em que vivo me enche de esperança”, disse Karl Marx. O poeta Hölderlin exemplifica o potencial utópico da esperança: “Onde há perigo, cresce também o que sal­va”. Perigo e fé são a verdade da esperança.