Resenha: GALUCH, Maria T. B.; CROCHICK,
José Leon. Formação cultural, ensino, aprendizagem e livro didático para os
anos iniciais do ensino fundamental. Maringá: Eduem, 2018.
A publicação
é resultado das pesquisas de pós-doutorado da professora Maria Terezinha Galuch
(Uem), sob orientação de José Leon Crochick (Usp). Trata-se de uma proposta
pedagógica pautada na Teoria Crítica desenvolvida por Theodor Adorno e Max
Horkheimer e demais pensadores do Instituto de Pesquisa Social, posteriormente
conhecido como Escola de Frankfurt, aplicada como análise de materiais
didáticos do ensino fundamental. O objetivo específico do livro, contudo, não limita
voos mais amplos, quer seja, a fundamentação de uma abordagem crítica dos
atuais modelos educacionais e propostas pedagógicas, sob a ótica de uma “pseudoformação”
e da “heteronomia”. Portanto a amplitude da pesquisa e sua relevância extrapola
os limites imediatos dos quais ela se destina. É uma preciosa ferramenta de
crítica das atuais condições de ensino e aprendizagem, bem como do modelo
educacional vigente.
O primeiro e
o segundo capítulos tem por objetivo analisar a formação, fruto da objetividade
social, e sua mediação pela indústria cultural, também responsável por torná-la
pseudoformação. Do terceiro ao quinto capítulo a teoria crítica é aplicada
enquanto método de análise de livros e projetos pedagógicos, com foco no ensino
fundamental. Os autores denunciam e desnudam a aparente neutralidade dos livros
didáticos ainda pautados em teoremas positivistas, sua linearidade, exposição
descritiva. A linguagem dos primeiros tópicos, porém, não é muito acessível aos
não iniciados nos postulados de Adorno e Horkheimer. Por isso, torna-se mister,
expor didaticamente os conceitos principais da obra para melhor compreensão de
seus objetivos, sobretudo o termo “indústria cultural” e sua relação crítica
com educação contemporânea.
A Indústria
cultural substitui os esquematismos da razão e prepara o mundo tal como deve
ser percebido: sempre igual, sem movimentos, sem contradições; quando essas
existem são devidas a falhas do pensamento ou conflitos psicológicos.
Certamente os autores da Escola de Frankfurt não negam que haja contradições
lógicas e distúrbios pessoais, mas esses não equivalem às contradições
objetivas. Resumidamente, a indústria cultural poderia ser definida no conceito
que Walter Benjamin a apreende, o conceito de “dialética da imobilidade” (Dialektik in Stillstand). É certo que a
dialética, quer seja idealista como em Hegel ou a materialista de Marx,
pressupõe movimento, avanços, retrocessos, pois a matéria é dinâmica. Ocorre
que com o aparato tecnológico atual, seu entretenimento, sua publicidade,
poder-se-ia dizer que a dialética, o motor da história, existe apenas em
aparência, enquanto falso movimento, falsa mimese.
Segundo
Adorno e Horkheimer, na Dialética do
Esclarecimento, a função da indústria cultural consiste justamente em
impedir eficazmente qualquer desejo de transformação, qualquer esboço de
inciativa por parte dos trabalhadores. O engodo da indústria cultural será
duplo. Ela mantém as massas surdas, não as encoraja a recuperar a audição;
reforça ainda mais esse enfermidade ao fazer acreditar que não há problema
nenhum, que todos escutam muito bem. Produz, então, uma séria sonora
ininterrupta e sempre repetitiva que preenche constantemente ouvidos e cabeças
como se não houvesse nem possibilidade de silêncio nem possibilidade de outros
sons.
A
indústria cultural não apenas mascara a violência social que separa a classe
privilegiada da massa de trabalhadores; em vez de denunciar a surdez destes
últimos, os acostuma a ouvir sempre o mesmo disfarçado de novo, leva-os,
portanto, àquilo que Adorno chama, em outros textos, de “regressão da audição”.
“A diversão proposta pela indústria cultural é antídoto à resistência à
adaptação à sociedade existente, diminuindo a possibilidade de sua alteração”
(GALUCH, CROCHICK, 2018, p. 22).
Para
exemplificar e fundamentar esta tese, Horkheimer e Adorno (1985, p. 45)
recorrem ao mito, especificamente à Odisseia,
de Homero. O poema que canta o difícil retorno de Ulisses (ou Odisseu) de Tróia
para Ítaca, na Grécia. Na viagem, ele se depara com diversos obstáculos
colocados propositalmente para impedir seu regresso. No Palácio de Circe,
Ulisses demora um ano inteiro vivendo de delícias e esquece-se da casa e de
Penélope, sua esposa. Num dado momento, ao comer “o lótus mais doce que o mel”,
Ulisses se esquece até de narrar os fatos. O “esquecimento” através de falsos
prazeres e distrações também é descrito na alegoria do “canto das sereias”,
retomado magistralmente por Adorno. “Alertas e concentrados, os trabalhadores
tem que olhar para frente e esquecer o que foi posto de lado. A tendência que
impele à distração (Ablenkung), eles
têm que se encarniçar em sublimá-la num esforço suplementar”. De certa forma os
remadores (trabalhadores) são compelidos a distraírem-se, a conformarem-se com
o olhar apenas para frente, numa única direção.
Distração e
entretenimento são problemas também inseridos no cenário da educação,
diretamente relacionados ao conceito de pseudoformação. Sobre este termo, os
autores preferem a tradução do termo alemão halbbildung,
utilizado por Adorno em Teoria da
semicultura, por “pseudoformação”, e não como habitualmente “semiformação”. Mas advertem que “não se trata, na crítica à
pseudoformação, de evocar o ressurgimento da formação clássica”, pois “hoje
adiantaria pouco ensinar o que era ministrado para alunos de então, pois, a pseudoformação,
ditada também pela indústria cultural, altera os sentidos humanos e não somente
a consciência” (p. 39).
A falsa
formação refere-se a dispersão com que as atuais máquinas distraem os sujeitos,
o tempo todo e repetidamente. Computador, celular, mídias nas quais diversas
possibilidades de comunicação e de entretenimento mesclam-se ao conhecimento. A
concentração e disciplina são constantemente testadas frente aos impulsos da
publicidade, imagens embelezadoras da ideologia, nas quais celebridades e
modelos competem com um ensino sistematizado. A memória também é testada nesse
cenário cultural, os conteúdos que requerem maior internalização como poesias,
literatura, matemática, elementos químicos da tabela periódica, etc., são
constantemente dispensados, dado à possibilidade de consulta instantânea em
qualquer mídia on-line.
Um estudo da Kayser Family Fundation afirma que
jovens de oito a dezoito anos gastam agora mais de sete horas e meia por dia
com smartphones, televisores e outros instrumentos eletrônicos, em comparação
com as menos de seis horas e meia de cinco anos atrás. Quando se acrescenta o
tempo adicional em que os jovens passam postando textos, falando em seus
celulares ou realizando múltiplas tarefas, tais como ver TV enquanto atualizam
o Facebook, o número sobe para um total de onze horas de conteúdo de mídia por
dia. (BAUMAN, 2013, p. 53).
A perda
substancial que ocorre com a pseudoformação é, segundo Adorno e Benjamim, a
substituição da narração pela informação, o elemento mais básico e limitado na
escala de aprendizagem. Perde-se com a ausência da reflexão, da crítica, a
própria experiência, elemento em desintegração na modernidade. “Na atualidade,
com a pseudoformação, os sujeitos são dispensados também de memorizar [até
mesmo] as informações” (GALUCH; CROCHICK, 2018, p. 47).
As mudanças ocorridas desde o
final do século XX – hegemonia do capital, a revolução tecnológica, a
midiatização e as redes sociais – parecem exigir novos métodos educacionais. Importância
do permanente questionamento histórico e epistemológico presente na construção
dos debates sobre metodologia de ensino. Nesse cenário onde o Estado parece cada vez
mais ausentar-se e isentar-se de sua atribuição social na Educação, tanto em
áreas de pesquisa como no ensino superior e básico, a relevância da Teoria Crítica
mostra-se profundamente atual e o trabalho dos professores Leon Crochick e
Terezinha Galuch um exemplo de crítica que lembra Marx, ainda que eles não o
citem: “A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o
homem suporte grilhões desprovidos de fantasias ou consolo, mas para que se
desvencilhe deles e colha a flor viva” (MARX, 2010, p. 146).
Em artigo
sobre o Instituto Alemão de Pesquisa Livre [Instituto de Pesquisa Social],
Walter Benjamin (2013, p. 152) situa e diferencia o método analítico dos
frankfurtianos para com os positivistas e pragmáticos. O positivismo, como se
sabe, volta as costas para a práxis social, pois ele concebe apenas o sentido
evolutivo da história e da ciência e não os retrocessos da sociedade. Já para o
pragmatismo, a comprovação da teoria na práxis é o critério de verdade
satisfatório. Em contraposição a isso, para o pensador crítico, a própria
comprovação, a própria demonstração de que ideia e realidade objetiva coincidem
e constituem um processo histórico que pode ser inibido e interrompido a
qualquer momento. Nisso reside o teor de vigília da teoria crítica, consciente
de que a barbárie é uma ameaça constante à civilização. O pensador crítico
monta sua trincheira no território da educação e utiliza as armas da crítica
para o desnudamento e desmascaramento cínico da pseudoformação e heteronomia,
isto é, contra o “canto das sereias” e o “lótus mais doce que o mel” da
indústria cultural.
Educação ou
barbárie?, é a grande mensagem e legado do livro objeto desta resenha.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: conversas com Ricardo Mazzeo;
tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião.
Organização Michael Löwy. São Paulo: Boitempo, 2013.
HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor.
Dialética do esclarecimento:
fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel; Introdução. São Paulo: Boitempo, 2010.