Este
artigo pretende analisar alguns conceitos psicológicos na filosofia de Ernst
Bloch. Para romper com o saber puramente contemplativo e idealista das utopias,
Bloch as articula com a filosofia da práxis de Marx e com a ontologia da
“consciência antecipadora” ao que “ainda-não-veio-a-ser”. Nesse processo, o
homem compreendido como um ser ainda em formação é remetido em direção do
futuro, ao novum, ao devir. O impulso ou interrupção que nos move
necessariamente rumo ao novo é abordado por Bloch de uma forma bastante
peculiar e distinta às pulsões freudianas; a fome, as profecias, os movimentos
milenaristas, as utopias e os sonhos acordados são a potência humana.
O ponto central de O Princípio Esperança – maior obra de
Bloch – é a espiral de um sistema aberto, ou seja, do homem ainda em formação e
da História como um processo aberto, compatível com visões cíclicas de
mudanças, rupturas, avanços ou mesmo regressões e incompatível com a ideia de
progresso contínuo. Este pensamento pode ser sintetizado na conhecida fórmula
“S ainda não é P”, sujeito ainda não é predicado. O componente dialético de
Ernst Bloch, apesar de certa influência de Hegel, não é de forma alguma
idealista, puramente contemplativo; ele está repleto de uma carga
revolucionária materialista. A vertente marxista da psicanálise é bem conhecida
em Vigótsky e sua “Formação social da mente”, um epilogo psíquico das obras de
Marx como “18 Brumário” e de Engels como “Sobre papel do trabalho na
transformação do macaco em homem”, mas ganha fundamentação histórica e erudita
em Ernst Bloch.
Eric Hobsbawm qualifica Bloch como um autor soberbo,
pois desdenha Freud e Jung, mas surpreende-se com a erudição do filósofo da
Esperança e conclui enfatizando que “não é todo dia que somos lembrados, com
tanta sabedoria, erudição, inteligência e domínio da língua, de que a Esperança
e a construção do paraíso terreno são o destino do homem”. Como escreveu Marx a
Ruge em 1843: “Ficara evidenciado (...) que o mundo já há muito possui o sonho
de uma coisa de que ele apenas precisa ter a consciência para possuí-la de
fato”. No entanto, como demonstra Bloch, a tomada de consciência é um processo
doloroso na moderna sociedade industrial, reificada, consumista; as ideologias
ou “imagens idealizadas no espelho”, um espelho embelezador que reflete apenas
o que a classe dominante quer do desejo e como ela o quer, são reformuladas por
Ernst Bloch de modo que “o espelho se origine do povo”. Parte substancial dessa
reformulação e, igualmente relevante para o desenvolvimento das “utopias
concretas” é investigação da psicanálise burguesa, do inconsciente freudiano e
dos arquétipos junguianos.
Ontologia do
“ainda-não-consciente”
Há uma clara influência da psicanálise freudiana em
Bloch, mas há uma distinção entre seu conceito de “ainda-não-consciente” ou
“pré-consciente” e o “inconsciente” de Freud ou “id”, o qual cerca a consciência como se fosse um anel, estando
fixado no passado, tendo a função de liberar as imagens e desejos comprimidos;
enquanto que os sonhos diurnos são voltados para o futuro. Dito de outra forma,
“o ainda-não-consciente” está para o “inconsciente” freudiano assim como o
“sonho diurno” está para os “sonhos noturnos” (MUNSTER, 1997, p. 26).
Para Ernst Bloch, o inconsciente da psicanálise nunca é
um ainda-não-consciente, um elemento
de progressões, ele consiste, antes, de regressões. Tornar consciente esse
inconsciente revela apenas o que já foi, o que vale dizer que “no inconsciente de Freud não há nada de novo”.
Isso ficou claro também em C. G. Jung, que reduziu a libido e seus conteúdos
inconscientes a um fenômeno pré-histórico, onde residiriam exclusivamente
memórias ou fantasias primordiais da história tribal, denominadas arquétipos.
Bloch é um crítico ferrenho de Jung, qualificando-o como “o fascista
psicanalítico” que “menospreza a
consciência, como alguém que desdenha a luz” (BLOCH, 2005, p. 59).
Freud e Jung concebem o inconsciente meramente como algo
passado na evolução histórica, como algo submerso no porão e existente apenas
ali. Um e outro conhecem, ainda que de modo diferenciado, apenas o inconsciente
voltado para trás ou situado abaixo da consciência já existente, “eles não
conhecem uma pré-consciência do novo”. Um agravante, para Bloch é que, tanto em
Freud, Jung ou Adler, a doutrina das pulsões jamais é discutida como uma variável das condições socioeconômicas.
Porém, se de fato se pretende distinguir pulsões
fundamentais no homem, elas variam em função das condições materiais tais como
classe e época, e conseqüentemente também conforme a intenção e a direção da
pulsão. (...) Elas não se destacam de modo tão evidente como, por exemplo, a
fome, que psicanaliticamente foi deixada
de fora em toda parte (BLOCH, 2005, p. 67).
Bloch adverte que a apreensão da fome como uma pulsão
fundamental não restringe a expressão real da questão ao interesse econômico,
ao velho debate da base e superestrutura; o fator econômico não é o único, mas
o fundamental; nunca determinante, embora condicionante. A partir da fome
formam-se os afetos expectantes (angústia, medo, esperança e fé) que se
estendem através do aspecto desejante até o alvo de uma vida melhor: formam-se sonhos diurnos. “Eles sempre procedem de
uma carência e querem se desfazer dela. Todos são sonhos de uma vida melhor
(...), o que é intuído pelo impulso de auto-expansão para frente é um
ainda-não-consciente” (BLOCH, 2005, p. 79).
Todos os afetos expectantes indicam para frente, o
contexto temporal do seu conteúdo é o futuro, sendo que a esperança implica o
bem-supremo, a bem aventurança irrompendo, que dessa forma ainda não existiu. A
esperança e a confiança (afetos expectantes positivos) frustram o medo e a
angústia ou desespero. Bloch (2005, p. 115) cita uma passagem de Hölderlin que
exemplifica o potencial utópico da esperança: “Onde há perigo, cresce também o
que salva”. Perigo e fé são a verdade da esperança, de tal modo que ambos estão
reunidos nela e o perigo não tem medo, nem a fé tem em si uma quietude
indolente”. A esperança é, em última análise, um afeto prático, militante.
O conteúdo ativo da esperança, na qualidade de
conscientemente esclarecido, cientemente explicado, é a função utópica
positiva, enquanto o conteúdo histórico da esperança, evocado primeiramente em
representações, investigado enciclopedicamente em juízos concretos, é a cultura
humana na relação com seu horizonte utópico-concreto (BLOCH, 2005, p. 146).
Dessa forma a utopia torna-se um elemento da atividade
humana orientada para o futuro, um topos
da consciência antecipadora e força ativa dos sonhos diurnos. Esse topos utópico é possível pelo fato de
que o mundo não é um lugar fechado, ou processo acabado, porque possui
horizonte aberto e cheio de possibilidades “ainda-não” realizado, tudo no mundo
é movimento e agitação, as vezes em estado de latência, as vezes
revolucionário.
Conclusões
O espírito utópico de Bloch, cujas categorias centrais
são “possibilidade” e “esperança”, rompem com o estado de reificação do mundo
burguês e seu aparato ideológico. Quando Bloch escreve que o “não” é um “ainda-não” que pode
“vir-a-ser”, ele desmistifica a realidade social estratificada, coisificada e
abre uma fronteira no campo da filosofia da práxis rumo ao novo, ao devir, ao
futuro, enfim... à esperança. O ímpeto e o desejo irrompem através dos sonhos
diurnos e da consciência antecipadora e tem como referência o horizonte mais
amplo e mais claro, rumo à nova aurora, num sentido semelhante à frase de Marx
e Engels escrita em 1848 no Manifesto Comunista: “tudo que é sólido desmancha
no ar”.
Ernst Bloch é
mais que um filósofo ou teólogo, antes de tudo “é um artista com penetração
psicológica de um escritor maior, um poli-historiador” que entende a origem do
processo não em sua gênese, mas no ômega. Incipt
vita nova!