segunda-feira, 24 de junho de 2013

Um “saco de batatas”, spray de pimenta, vinagre: a salada heterogênea e inconstante dos recentes protestos populares.

“Apenas o historiador míope considera ‘cegas’ as explosões da multidão” (Edward Thompson, Costumes em Comum).

          No calor da hora toda convicção pode reduzir-se ao equivoco. Por isso este texto busca interpretar de forma parcial a recente onda de protestos que cobriu o país. Passadas as primeiras horas de empolgação e apoio irrestrito é necessária uma análise fria e racional. Talvez o método de “escovar a história a contrapelo” ou nadar contra a corrente possa chocar o leitor que se apóia nas conclusões midiáticas e do senso comum. No entanto, é preciso cautela e lembrar a “marcha da família com Deus pela liberdade”, o ensaio geral para o golpe civil-militar de 1964, bem como a greve de caminhoneiros que desestabilizou o Chile e abriu as portas para a deposição de Allende, ou ainda os pomposos desfiles dos camisas negras de Mussolini e das S.A. de Hitler. Em todos os casos a opinião pública declarou apoio irrestrito à multidão; as conseqüências disso todos conheceram.
      Essa reflexão naturalmente não invalida a legitimidade do movimento, ao menos suas motivações iniciais: o passe livre, reduzir a tarifa e melhoria do transporte coletivo. Nada mais justo. Entretanto, a história nos dá provas de que não importa a benevolência e altruísmo das ações de massa, mas sim a apropriação que se faz a posteriori das suas conseqüências, nesse sentido a multidão – sobretudo de estudantes – é constantemente manipulada como “massa de manobra”. A inconsistência e heterogeneidade do movimento corroboram com a tese de que não existe uma representação própria para seus anseios e objetivos imediatos, antes, são representados por uma elite que não anda de ônibus e portanto, não teria motivos para protestar.
         É nesse sentido que se faz conveniente lembrar a máxima de Karl Marx sobre a falta de consciência de classe dos camponeses durante as Revoluções de 1848: um saco de batatas. A classe trabalhadora lutava ainda contra os inimigos de seus inimigos, ou seja, contra os inimigos de burguesia, a nobreza. Constituía uma classe em si, mas não uma classe para si. O proletariado foi definido por Marx com o termo lumpen, literalmente “trapo” em alemão, como uma colcha de retalhos, são os trapos que sobram quando tenta-se unir o tecido principal. O lumpemproletariado deu o tom para a trágica ascensão de Luis Bonaparte em 1850 frustrando e interrompendo a luta legitima do verdadeiro proletariado por vinte anos, até a Comuna de Paris, em 1871.
As rebeliões e protestos populares durante a Revolução Industrial oferecem-nos importantes chaves comparativas com o atual movimento. Respeitadas as diferenças de tempo e espaço, algumas comparações podem auxiliar as breves conclusões esboçadas ao final. Vejamos alguns exemplos.
 Em 1768, quando, entre a multidão que cercou a Câmara dos Lordes, havia pessoas que gritavam ‘que o pão e a cerveja estavam caros demais e que tanto valia morrer na forca como de fome’. É o que nos conta George Rudé (1991, p. 272) em excelente trabalho sobre a multidão na história. O autor conclui que “inconstância ou ‘imobilidade’ da multidão é, evidentemente, um mito que se santificou pela repetição. Umas das palavras inglesas para multidão, mobb, vem do latim móbile vulgus, não sendo de surpreender que as classes ricas, sempre que foram impotentes para controlar as energias da multidão, a tivessem considerado um monstro inconstante, ao qual faltava qualquer lógica. “De fato, o estudo da multidão pré-industrial sugere que ela se amotinou visando a objetivos preciosos e raramente empenhou-se em ataques indiscriminados a propriedades ou pessoas”.
Thompson (1998, pp. 152 e 155) veria o século XVIII como um período de crescente confrontação entre a economia de mercado inovadora, baseada no laissez-faire e uma economia moral das plebes, fundamentada na tradição paternalista e no direito consuetudinário. “O modelo paternalista existia no corpo da lei estatuária, bem como no direito consuetudinário e no costume”. “É possível detectar em quase toda ação popular do século XVIII uma noção legitimadora (...) defendendo direitos tradicionais; e de que, em geral tinham o apoio e o consenso mais amplo da comunidade. De vez em quando esse consenso era endossado por alguma autorização concedida pela comunidade”.
Esses motins ou rebeliões não tinham como objetivo a destruição de bens materiais (como ocorre posteriormente com o Ludismo), era um movimento coletivo, pouco organizado, onde a ação principal não era o saque de celeiros nem o furto de grãos de farinha, mas fixar o preço. Esse processo estava enraizado na mentalidade das massas graças a uma construção história de longa duração (no sentido de Fernand Braudel), baseada no Book of Orders que, desde o reinado de Elizabeth, garantia o abastecimento mínimo de cereais à população através de magistrados que regulavam a distribuição, os estoques e até o preço dos grãos. Era, de fato, a intervenção e o controle do abastecimento por parte do Estado. Em suma, o poder de fixar o preço dos grãos e de farinha ficava, numa emergência, a meio caminho entre a imposição e a persuasão.
Fixar o preço do alimento e até do dizimo: “Em muitas paróquias, o primeiro lugar visitado foi a casa do pároco, onde o ocupante era solicitado com cortesia, mas com firmeza, a reduzir os dízimos”. Em Sussex os dízimos foram baixados de 1400 libras para 400 libras. “Párocos da Igreja Anglicana foram advertidos para que abrissem mão de seus dízimos” (RUDÉ, 1991, p. 174).
No entanto, esse modelo econômico baseado na regulamentação e no abastecimento direto do produtor ao consumidor, sem a presença do intermediário ou do atravessador, foi paulatinamente suprimido no decorrer da segunda metade do século XVIII. O modelo paternalista estava se rompendo em muitos pontos e a legislação contra a compra de mercadorias antecipadas fora revogada em 1772. Nesse período o modelo paternalista tinha “uma experiência real fragmentaria. Nos anos de boa colheita e preços moderados, as autoridades caiam no esquecimento. Mas se os preços subiam e os pobres se tornavam turbulentos, o modelo era ressuscitado, pelo menos para produzir um efeito simbólico” (THOMPSON, 1998, p. 160).
Esse debate que culminou com a revogação da legislação contra as compras antecipadas, assinalou uma vitória do laissez-faire, a liberdade ilimitada e irrestrita do comércio dos cereais era também o que Adam Smith pleiteava. Para Thompson (1998, p. 161), esse novo modelo econômico trazia consigo uma desmoralização da teoria do comercio e do consumo.
Em artigo debatendo as obras e os críticos da obra de Thompson, Sidnei Munhoz (1993, pág. 163) acredita que sua tese principal é que o processo de constituição de classe se dá “em decorrência do fato de as pessoas estabelecerem, em seu cotidiano, identidades e diferenças, sentindo-se como integrantes de um mesmo grupo ou de grupos antagônicos”. Em suma, a consciência que se produz no desenrolar da ação humana, em suas lutas e batalhas, propicia a formação da classe, dotando-a de uma consciência, mesmo que embrionária como sentimento de “pertencimento” a uma determinada classe distinta e antagônica daquela dominante.
A obra de Eric Hobsbawm está relacionada à tentativa de apreensão de como ocorreu o progresso político da consciência de classe. Nesse aspecto, “Os Trabalhadores” e, especificamente o capítulo intitulado “Os destruidores de máquinas” é de vital pertinência. Nesse estudo, o autor rechaça a ortodoxia marxista que insistia em ver nos protestos de enfrentamento e quebra de máquinas uma rebelião desorganizada, sem liderança e que refletia a ignorância da multidão frente à mecanização inevitável. Hobsbawm (1981, pp. 21 e 22) demonstra que, inversamente à opinião convencional, “é evidente que a luta deles não foi uma simples luta contra o progresso técnico com tal”, mas sim uma tentativa coletiva de fazer pressão aos empregadores, trabalhadores extras e furadores de greve, além de garantir a solidariedade essencial entre os trabalhares.
 A crença quase mitológica na “mão invisível” do mercado que se auto-regula, num período em que as profecias mais apressadas chegaram a prever o “fim da História”, como em Fukuyama, caíram por terra logo após o colapso do bloco soviético. A ilusão de que tudo adiante seria liberal e livre mercado foi logo desmistificado com as guerras, políticas protecionistas e organização de blocos econômicos locais. Para Hobsbawm, enquanto houve uma alternativa ao capitalismo liberal, as classes trabalhadoras conquistaram direitos como nunca antes, o famoso estado de bem-estar social e as políticas keynesianas. Como afirma Martins (2010, p. 84), por mais que o modelo de socialismo real não tenha sido o ideal, ele teve o efeito de “corrigir os excessos do capitalismo”.      
A concepção dos historiadores marxistas britânicos de uma História social (econômica e cultural), tal como descrito por Harvey Kaye, resgatando a memória dos chamados vencidos numa perspectiva “de baixo para cima”, é de vital importância para a compreensão de que os grandes protagonistas da História são as classes trabalhadoras, num sentido etimológico da palavra “classes”, enquanto coletividade, como relações e processos históricos. Nesse sentido, as classes baixas tornam-se ativas na formação da História, mais que meras vitimas passivas no sentido de “fazer-se” de Thompson.         
Conclusões:
          “Às reivindicações sociais do proletariado limou-se-lhes a ponta revolucionaria e deu-se-lhes uma volta democrática; às exigências democráticas da pequena burguesia retirou-se a sua forma meramente política e afiou-se a sua ponta socialista”. Assim nasceu a social-democracia, escreveu Marx no 18 brumário. O caráter da social-democracia consiste em converter trabalho assalariado e capital em harmonia, retirando-lhe seu tempero conflituoso das contradições. Mais de vinte anos de social-democracia no Brasil nos deram mostras desse processo. A doce ilusão da classe trabalhadora de aburguesar-se, no sonho da ascensão social. O que a social-democracia tem de mais eficaz é seu poder persuasivo que causa embriaguez e miopia avançada quanto à realidade social. A transformação da sociedade através de reformas por vias democráticas – o programa do PSDB e PT – limita-se ao quadro da pequena burguesia, ao consumo, portanto.
         A “besta”, a multidão sem programa político e sem representatividade, ainda que domesticada, só beneficia a classe dominante. E aí está o porquê do apoio tácito e oportunista da mídia! A frase clássica de Thompson, de que “a cultura popular é rebelde, mas o é em defesa dos costumes” pode ter seu equivalente equiparado ao Brasil contemporâneo: “a cultura popular é rebelde, mas o é em defesa do consumo”. Como descrito por um colega com audácia anacrônica sobre a adesão de jovens aos protestos, assemelha-se as “cruzada das crianças”. Torceremos para que o desfecho não seja tão trágico quanto no medievo, onde as crianças coagidas a aderir uma guerra que não era sua, acabaram sendo vendidos como escravos ou mortos.
             Há, no entanto um ponto positivo dos protestos: mobilizar para a r(evolução) as energias da embriaguez. Resta-nos torcer para que essa energia não seja canalizada para uma revolução de caranguejo, como nos vinte anos de ditadura, ou seja, uma contra-revolução, ou uma revolução que anda para trás. A classe trabalhadora não pode limitar-se a “revolução dos I’pods e I’phones”.

Referências:
HOBSBAWM, Eric. Os trabalhadores: estudo sobre a história do operariado. Tradução Mariana Leão Teixeira Viriato de Medeiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
__________. Sobre História. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
KAYE, Harvey J. Los historiadores marxistas británicos: un análisis introductorio. Zaragoza: Univerdidad, Prensas Universitarias, 1989.   
MARX, Karl. 18 brumário de Luis Bonaparte, vol. II. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
RUDÉ, George. A multidão na história: estudo dos movimentos populares na França e Inglaterra, 1730-1848. Rio de Janeiro: Campus, 1991.

THOMPSON, Edward P. Costumes em Comum. Revisão técnica Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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