“Apenas o
historiador míope considera ‘cegas’ as explosões da multidão” (Edward Thompson,
Costumes em Comum).
No
calor da hora toda convicção pode reduzir-se ao equivoco. Por isso este texto
busca interpretar de forma parcial a recente onda de protestos que cobriu o
país. Passadas as primeiras horas de empolgação e apoio irrestrito é necessária
uma análise fria e racional. Talvez o método de “escovar a história a
contrapelo” ou nadar contra a corrente possa chocar o leitor que se apóia nas
conclusões midiáticas e do senso comum. No entanto, é preciso cautela e lembrar
a “marcha da família com Deus pela liberdade”, o ensaio geral para o golpe
civil-militar de 1964, bem como a greve de caminhoneiros que desestabilizou o
Chile e abriu as portas para a deposição de Allende, ou ainda os pomposos
desfiles dos camisas negras de Mussolini e das S.A. de Hitler. Em todos os
casos a opinião pública declarou apoio irrestrito à multidão; as conseqüências
disso todos conheceram.
Essa
reflexão naturalmente não invalida a legitimidade do movimento, ao menos suas
motivações iniciais: o passe livre, reduzir a tarifa e melhoria do transporte
coletivo. Nada mais justo. Entretanto, a história nos dá provas de que não
importa a benevolência e altruísmo das ações de massa, mas sim a apropriação
que se faz a posteriori das suas
conseqüências, nesse sentido a multidão – sobretudo de estudantes – é constantemente
manipulada como “massa de manobra”. A inconsistência e heterogeneidade do
movimento corroboram com a tese de que não existe uma representação própria
para seus anseios e objetivos imediatos, antes, são representados por uma elite
que não anda de ônibus e portanto, não teria motivos para protestar.
É
nesse sentido que se faz conveniente lembrar a máxima de Karl Marx sobre a
falta de consciência de classe dos camponeses durante as Revoluções de 1848: um
saco de batatas. A classe trabalhadora
lutava ainda contra os inimigos de seus inimigos, ou seja, contra os inimigos
de burguesia, a nobreza. Constituía uma classe em si, mas não uma classe para
si. O proletariado foi definido por Marx com o termo lumpen, literalmente “trapo” em alemão, como uma colcha de retalhos,
são os trapos que sobram quando tenta-se unir o tecido principal. O
lumpemproletariado deu o tom para a trágica ascensão de Luis Bonaparte em 1850
frustrando e interrompendo a luta legitima do verdadeiro proletariado por vinte
anos, até a Comuna de Paris, em 1871.
As
rebeliões e protestos populares durante a Revolução Industrial oferecem-nos
importantes chaves comparativas com o atual movimento. Respeitadas as
diferenças de tempo e espaço, algumas comparações podem auxiliar as breves
conclusões esboçadas ao final. Vejamos alguns exemplos.
Em 1768, quando, entre a multidão que cercou a
Câmara dos Lordes, havia pessoas que gritavam ‘que o pão e a cerveja estavam
caros demais e que tanto valia morrer na forca como de fome’. É o que nos conta
George Rudé (1991, p. 272) em excelente trabalho sobre a multidão na história.
O autor conclui que “inconstância ou ‘imobilidade’ da multidão é,
evidentemente, um mito que se santificou pela repetição. Umas das palavras
inglesas para multidão, mobb, vem do
latim móbile vulgus, não sendo de
surpreender que as classes ricas, sempre que foram impotentes para controlar as
energias da multidão, a tivessem considerado um monstro inconstante, ao qual
faltava qualquer lógica. “De fato, o estudo da multidão pré-industrial sugere
que ela se amotinou visando a objetivos preciosos e raramente empenhou-se em
ataques indiscriminados a propriedades ou pessoas”.
Thompson (1998, pp. 152 e 155) veria o século
XVIII como um período de crescente confrontação entre a economia de mercado
inovadora, baseada no laissez-faire e
uma economia moral das plebes, fundamentada na tradição paternalista e no
direito consuetudinário. “O modelo paternalista existia no corpo da lei
estatuária, bem como no direito consuetudinário e no costume”. “É possível
detectar em quase toda ação popular do século XVIII uma noção legitimadora
(...) defendendo direitos tradicionais; e de que, em geral tinham o apoio e o
consenso mais amplo da comunidade. De vez em quando esse consenso era endossado
por alguma autorização concedida pela comunidade”.
Esses
motins ou rebeliões não tinham como objetivo a destruição de bens materiais
(como ocorre posteriormente com o Ludismo), era um movimento coletivo, pouco
organizado, onde a ação principal não era o saque de celeiros nem o furto de
grãos de farinha, mas fixar o preço.
Esse processo estava enraizado na mentalidade das massas graças a uma
construção história de longa duração (no sentido de Fernand Braudel), baseada
no Book of Orders que, desde o reinado
de Elizabeth, garantia o abastecimento mínimo de cereais à população através de
magistrados que regulavam a distribuição, os estoques e até o preço dos grãos.
Era, de fato, a intervenção e o controle do abastecimento por parte do Estado.
Em suma, o poder de fixar o preço dos grãos e de farinha ficava, numa
emergência, a meio caminho entre a imposição e a persuasão.
Fixar
o preço do alimento e até do dizimo: “Em muitas paróquias, o primeiro lugar
visitado foi a casa do pároco, onde o ocupante era solicitado com cortesia, mas
com firmeza, a reduzir os dízimos”. Em Sussex os dízimos foram baixados de 1400
libras para 400 libras. “Párocos da Igreja Anglicana foram advertidos para que
abrissem mão de seus dízimos” (RUDÉ, 1991, p. 174).
No entanto, esse modelo econômico baseado na
regulamentação e no abastecimento direto do produtor ao consumidor, sem a
presença do intermediário ou do atravessador, foi paulatinamente suprimido no
decorrer da segunda metade do século XVIII. O modelo paternalista estava se rompendo
em muitos pontos e a legislação contra a compra de mercadorias antecipadas fora
revogada em 1772. Nesse período o modelo paternalista tinha “uma experiência
real fragmentaria. Nos anos de boa colheita e preços moderados, as autoridades
caiam no esquecimento. Mas se os preços subiam e os pobres se tornavam
turbulentos, o modelo era ressuscitado, pelo menos para produzir um efeito
simbólico” (THOMPSON, 1998, p. 160).
Esse
debate que culminou com a revogação da legislação contra as compras
antecipadas, assinalou uma vitória do laissez-faire,
a liberdade ilimitada e irrestrita do comércio dos cereais era também o que
Adam Smith pleiteava. Para Thompson (1998, p. 161), esse novo modelo econômico
trazia consigo uma desmoralização da teoria do comercio e do consumo.
Em
artigo debatendo as obras e os críticos da obra de Thompson, Sidnei Munhoz
(1993, pág. 163) acredita que sua tese principal é que o processo de
constituição de classe se dá “em decorrência do fato de as pessoas
estabelecerem, em seu cotidiano, identidades e diferenças, sentindo-se como
integrantes de um mesmo grupo ou de grupos antagônicos”. Em suma, a consciência
que se produz no desenrolar da ação humana, em suas lutas e batalhas, propicia
a formação da classe, dotando-a de uma consciência, mesmo que embrionária como
sentimento de “pertencimento” a uma determinada classe distinta e antagônica
daquela dominante.
A obra de Eric Hobsbawm está relacionada à
tentativa de apreensão de como ocorreu o progresso político da consciência de
classe. Nesse aspecto, “Os Trabalhadores” e, especificamente o capítulo
intitulado “Os destruidores de máquinas” é de vital pertinência. Nesse estudo,
o autor rechaça a ortodoxia marxista que insistia em ver nos protestos de
enfrentamento e quebra de máquinas uma rebelião desorganizada, sem liderança e
que refletia a ignorância da multidão frente à mecanização inevitável. Hobsbawm
(1981, pp. 21 e 22) demonstra que, inversamente à opinião convencional, “é
evidente que a luta deles não foi uma simples luta contra o progresso técnico
com tal”, mas sim uma tentativa coletiva de fazer pressão aos empregadores,
trabalhadores extras e furadores de greve, além de garantir a solidariedade
essencial entre os trabalhares.
A
crença quase mitológica na “mão invisível” do mercado que se auto-regula, num
período em que as profecias mais apressadas chegaram a prever o “fim da
História”, como em Fukuyama, caíram por terra logo após o colapso do bloco
soviético. A ilusão de que tudo adiante seria liberal e livre mercado foi logo
desmistificado com as guerras, políticas protecionistas e organização de blocos
econômicos locais. Para Hobsbawm, enquanto houve uma alternativa ao capitalismo
liberal, as classes trabalhadoras conquistaram direitos como nunca antes, o
famoso estado de bem-estar social e as políticas keynesianas. Como afirma
Martins (2010, p. 84), por mais que o modelo de socialismo real não tenha sido
o ideal, ele teve o efeito de “corrigir os excessos do capitalismo”.
A concepção dos historiadores marxistas
britânicos de uma História social (econômica e cultural), tal como descrito por
Harvey Kaye, resgatando a memória dos chamados vencidos numa perspectiva “de
baixo para cima”, é de vital importância para a compreensão de que os grandes
protagonistas da História são as classes trabalhadoras, num sentido etimológico
da palavra “classes”, enquanto coletividade, como relações e processos históricos.
Nesse sentido, as classes baixas tornam-se ativas na formação da História, mais
que meras vitimas passivas no sentido de “fazer-se” de Thompson.
Conclusões:
“Às
reivindicações sociais do proletariado limou-se-lhes a ponta revolucionaria e deu-se-lhes
uma volta democrática; às exigências democráticas da pequena burguesia
retirou-se a sua forma meramente política e afiou-se a sua ponta socialista”.
Assim nasceu a social-democracia, escreveu Marx no 18 brumário. O caráter da social-democracia consiste em converter
trabalho assalariado e capital em harmonia, retirando-lhe seu tempero
conflituoso das contradições. Mais de vinte anos de social-democracia no Brasil
nos deram mostras desse processo. A doce ilusão da classe trabalhadora de
aburguesar-se, no sonho da ascensão social. O que a social-democracia tem de
mais eficaz é seu poder persuasivo que causa embriaguez e miopia avançada
quanto à realidade social. A transformação da sociedade através de reformas por
vias democráticas – o programa do PSDB e PT – limita-se ao quadro da pequena
burguesia, ao consumo, portanto.
A
“besta”, a multidão sem programa político e sem representatividade, ainda que
domesticada, só beneficia a classe dominante. E aí está o porquê do apoio
tácito e oportunista da mídia! A frase clássica de Thompson, de que “a cultura
popular é rebelde, mas o é em defesa dos costumes” pode ter seu equivalente
equiparado ao Brasil contemporâneo: “a cultura popular é rebelde, mas o é em
defesa do consumo”. Como descrito por
um colega com audácia anacrônica sobre a adesão de jovens aos protestos,
assemelha-se as “cruzada das crianças”. Torceremos para que o desfecho não seja
tão trágico quanto no medievo, onde as crianças coagidas a aderir uma guerra
que não era sua, acabaram sendo vendidos como escravos ou mortos.
Há,
no entanto um ponto positivo dos protestos: mobilizar para a r(evolução) as
energias da embriaguez. Resta-nos torcer para que essa energia não seja
canalizada para uma revolução de caranguejo, como nos vinte anos de ditadura,
ou seja, uma contra-revolução, ou uma revolução que anda para trás. A classe
trabalhadora não pode limitar-se a “revolução
dos I’pods e I’phones”.
Referências:
HOBSBAWM,
Eric. Os trabalhadores: estudo sobre
a história do operariado. Tradução Mariana Leão Teixeira Viriato de Medeiros.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
__________.
Sobre História. Tradução Cid Knipel
Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
KAYE, Harvey J. Los historiadores marxistas británicos:
un análisis introductorio. Zaragoza: Univerdidad, Prensas Universitarias,
1989.
MARX, Karl. 18 brumário de
Luis Bonaparte, vol. II. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
RUDÉ, George. A multidão na
história: estudo dos movimentos populares na França e Inglaterra,
1730-1848. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
THOMPSON, Edward P. Costumes em Comum. Revisão técnica
Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
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