Sem a ideia de uma vida futura, seria
difícil ao homem suportar a sua condição de escravo. Daí a importância do
messianismo na história do patriarcado (Oswald de Andrade).
Na medida em que a humanidade desloca o sentido da história, do passado e presente, para um futuro indeterminado, quer seja o paraíso, a sociedade sem classes ou a crença ilimitada no progresso técnico, ela tende a negar o presente e as lutas da ordem do dia. Mesmo Marx, no Dezoito brumário fala em “poesia do futuro” e não em resgatar as energias atadas na tradição e na experiência. Trata-se de uma filosofia da história que, com Santo Agostinho ganhou fundamentação prática, é o processo de “esticar o círculo” da história grega e romana, o tempo do eterno retorno; a história desde Agostinho tem um sentido linear, um fim, uma meta, é escatológica, portanto. É a partir deste viés que os fatos ocorridos em Curitiba em 29-04-015 podem ser compreendidos profundamente e não apenas em essência. Na medida em que o governador Beto Richa começa a implantar seu projeto de desestatização, a engenharia do estado mínimo neoliberal, ele ameaça a própria noção de futuro da classe trabalhadora, de esperança. Reside aí um grande risco ao operariado, mas também o seu revés, a união de toda a classe em uníssono, pois o messias moderno não vem como redentor dos céus, ele é a própria humanidade redimida enquanto coletividade (LÖWY, 2005).
É
compreensível a busca de esperança no futuro. Walter Benjamin (1994), outro
autor messiânico, no ensaio “Experiência e pobreza”, afirma que “nunca houve
experiências mais radicalmente desmoralizadoras que a experiência estratégica
pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a
experiência do corpo pela fome, e experiência moral pelos governantes”. A esta
última frase poderíamos acrescentar “experiência imoral dos governantes”. Pois bem, é a partir desta crise da modernidade,
de tradições, experiência, da capacidade de narrar que, pode-se dizer, a classe
trabalhadora perdeu sua capacidade de odiar, de luta, de orgulho. Engels, em Condição da classe trabalhadora na
Inglaterra, narra o enfrentamento aberto de proletários com burgueses
durante a Revolução Industrial. Edward Thompson, em Costumes em comum, descreve as formas sutis e engenhosas dos
trabalhadores “persuadirem” os patrões por melhores condições de trabalho, com
cartas de ameaças ou mesmo atentados. George Rudé, em A multidão na história, demonstra como os motins foram eficazes na
regulação do preço do pão e (pasme) até do dizimo da paróquia. Auguste Blanqui
deixou um espectro de temor entre os franceses durante todo o século XIX e a
Comuna de Paris marcou a primeira grande experiência de autogestão da classe
trabalhadora, fenômeno que Marx descreveu como “um assalto aos céus”!
Mas
com o “avanço” técnico e a ilusão do progresso a classe trabalhadora perdeu sua
capacidade de odiar, de crítica; com as migalhas trabalhistas tornou-se
passiva; com a social democracia que provoca miopia avançada, tornou-se iludida
no sonho de aburguesar-se. Ao deslocar o eixo temporal histórico do passado
para o futuro (KOSELLECK, 2009), o proletariado (incluso aí os professores,
jamais nos esqueçamos disso) não mais retira suas energias da tradição, mas da
esperança; dos descendentes libertados e não dos antepassados escravizados.
Portanto temos nossa parcela de culpa nos eventos supracitados, o governador
Beto Richa é apenas o operador da “mão invisível do mercado”.
Dito
isto, vou descrever factualmente os três dias de batalha em Curitiba e, ao
final, retornar à tese inicial e expor a verdadeira motivação, o projeto
neoliberal enfim posto em prática no fatídico 29-04. Saímos de Maringá na noite
de segunda (27-04), num ônibus fretado pelo sindicado dos servidores da UEM.
Entre os presentes estavam alunos de diversos cursos, servidores e
sindicalistas, jovens de dezoito anos e senhores de 60. Chegamos na manhã de
terça na capital e montamos acampamento na praça em frente à Assembléia, no
centro cívico de Curitiba. Havia, de antemão, um clima bastante tenso, pois soubemos
que naquela madrugada os carros de som do sindicato de professores foram
guinchados à força pela tropa de choque da PM e os poucos que resistiram à
investida na calada da noite foram reprimidos com truculência e gás de pimenta.
Na
tarde de terça o projeto de lei número 252-2015 passou pela análise de comissão
e justiça e o revisor pediu prazo de 24 horas para entregar o documento final
para votação dos deputados. Portanto sabíamos que a votação seria na
quarta-feira dia 29-04. Mas naquela tarde, a tentativa do sindicato em colocar
um carro de som no espaço público do centro cívico causou alvoroço dos PMs e
mobilização da tropa de choque para impedir seu acesso. Diversas viaturas
cercaram as entradas possíveis e inevitavelmente houve o primeiro atrito. O
nervosismo dos policiais, o clima de guerra, já davam mostras do que seria de
fato o massacre do dia seguinte. Apenas com grande mobilização, um jogo de
paciência, de centímetro em centímetro é que foi possível encaminhar o caminhão
no interior de um local público, não sem sentir os efeitos de gás lacrimogêneo.
Foi o ensaio geral para a quarta-feira. Convém notar que a própria instalação
de banheiros químicos foi vetada no local.
Após
o entrevero uma aparente boa notícia parecia por fim às expectativas iminentes de
confronto. Os advogados do sindicato conseguiram uma liminar (em foto) que
permitia a entrada dos manifestantes (conforme a capacidade da casa, cerca de
400 pessoas). Se o Sr. deputado Traiano e o judiciário paranaense corrompidos
pelo Richa tivessem aceito o documento, provavelmente toda a barbárie do dia
seguinte teria sido evitada, ao menos fora da Assembléia. Mas não, ele foi
cassado de um dia para o outro, numa rapidez pouco habitual em se tratando do
judiciário...
A
praça de guerra. Antes de descrever o caos e a barbárie promovidos pelo
secretário Francischini é coerente analisar a estratégia de “defesa” da Alep. Seguramente
o cerco ao prédio foi planejado por semanas, uma organização militar de
bloqueio e isolamento de perímetro visto somente em guerras. Haviam três
barreiras humanas, a primeira formada por soldados e jovens cadetes, estes
evitaram ao máximo agressões e o conflito. Logo atrás dos milhares de PMs
estavam os militares mais preparados, o choque e a rotan, às centenas,
lembravam os pretorianos romanos protegidos por armaduras, escudos e um
blindado com canhões de água. A terceira e última barreira a ser vencida estava
postada logo na rampa de entrada do prédio, dezenas de cães, alvoroçados e tão
raivosos quanto o próprio secretário de “segurança”. O ataque ao cinegrafista
da Band deu mostras do que poderia ter ocorrido caso rompêssemos o front. Até o teto dos edifícios estava
guarnecido e um helicóptero dava apoio tático do deslocamento das massas para
melhor direcionamento do Choque, além de despejar bombas de gás lacrimogêneo.
Às
14:30 da quarta-feira, após vencidas todas as tentativas diplomáticas para o
acesso à votação e concomitante ao início da sessão o inevitável embate teve
início com a tentativa de romper o cerco policial. A repressão foi inversamente
proporcional ao avanço dos professores, desorganizados, numa frente única que
facilitou o bloqueio. Não havia tática entre os servidores, apenas vontade e
bravura rapidamente dispersada pelas bombas de efeito moral, balas de borracha
e gás lacrimogêneo. O gás lacrimogêneo (cloroacetofenona) é considerado “a mais
humana” das armas químicas, empregado desde a Primeira Guerra Mundial, afeta as
mucosas do rosto (olhos, nariz e boca); é impossível manter-se mais de trinta
segundos sob efeito do gás, a respiração é bloqueada, as lágrimas são
estimuladas ao máximo e, em casos extremos pode provocar taquicardia. Os mais
velhos foram afetados gravemente, com desmaios e até convulsões.
O
conceito de batalha ou confronto pressupõe igualdade de forças no embate, o que
não houve, foi um massacre. A tropa de choque dispersou a massa e isolou os
organizadores na retaguarda em frente à prefeitura, há cerca de 200 metros da
assembléia, onde os feridos eram levados e atendidos. A entrada de ambulância,
a mais elementar condição de humanidade, também foi proibida. Durante duas
horas, ininterruptamente as bombas e os tiros não cessaram. Sabemos que os
apelos de clemência da esfera federal foram recusados pelo governo. Mesmo a
comissão de senadores que veio a Curitiba na tentativa de pacificação teve sua
atuação nula e impotente. A votação ocorreria a qualquer preço e ocorreu.
A
história se repetiu. Em 1912 um coronel belicista como pretensões políticas em
Curitiba, chamado João Gualberto, levou cordas e uma metralhadora para trazer o
monge José Maria e os rebeldes do Contestado amarrados ou mortos a capital do
estado. Os ferozes caboclos do Paraná, no entanto, resistiram, a metralhadora
falhou e no combate à arma branca o coronel acabou morto pelos revoltosos. Para
os desavisados, Gualberto ainda é o patrono da polícia militar do Paraná, mas
já tem um concorrente a altura, o secretário Francischini. Naquela ocasião o
messianismo uniu todos os revoltosos, a expectativa de ressurreição do Monge
José Maria e o retorno de um exército encantado mantiveram a luta dos caboclos
pela manutenção de seus direitos tradicionais, alheado a eles pela nova ordem
capitalista e a monetarização da terra. Resistiram bravamente por mais três
anos contra não apenas a polícia e milícias estaduais, mas contra a metade dos
efetivos do exército de então, cerca de seis mil soldados, aviação e modernos
armamentos de guerra.
A
irmandade dos rebeldes do Contestado pode nos deixar algumas lições: ainda
tinham a seu favor todo o fervor da experiência, que nós perdemos. Tinham a fé
nas tradições, que trocamos pelo comodismo das telas de led e a revolução dos smarth fones. Em síntese, vale a máxima
de Walter Benjamin, de que todo documento de cultura é também um documento de
barbárie. A evolução da técnica traz consigo um índice avesso, o retrocesso da
sociedade. Contudo, a experiência de choque sofrida pelos professores no “dia
das lamentações” pode ser uma data emblemática. A virada de mesa, a tomada de
consciência de que os professores fazem parte de uma forma muito peculiar de
sacerdócio. A história do sacerdócio caracteriza-se como fonte do que Friedrich
Nietzsche havia de chamar a Moral de Escravos. Nos velhos livros religiosos,
verifica-se uma coincidência de ordenações, princípios e máximas que poderiam
constituir a Cartilha do Escravo Perfeito.
O sacerdote foi muitas vezes o
legislador, outras vezes, através de augúrios e oráculos, presidiu a paz como
ordenou a guerra. Sacerdócio quer dizer ócio consagrado aos deuses. O ócio não
é esse pecado que farisaicamente se aponta como a mãe de todos os vícios. Ao
contrário, Aristóteles atribui o progresso das ciências no Egito ao ócio
concedido aos pesquisadores e aos homens de pensamento e de estudo. A palavra
ócio em grego é sxolé, donde se deriva escola. É o que nos ensina o
filósofo e escritor modernista Oswald de Andrade.
Somente
o sacerdócio é capaz de deter o
programa de governo do Richa, o “choque” de gestão, finalmente posto em prática
no dia 29-04. Não se trata de mera analogia entre o neoliberalismo e a tropa de
choque (teoria e prática), mas de um plano de governo que somente agora, sublimado
pelo gás lacrimogêneo, toma forma. Este foi apenas o primeiro round, o primeiro golpe contra a classe
trabalhadora. Primeiro furta-se o fundo de previdência que mantém a liquidez do
serviço público do estado, trata-se de um jogo de xadrez. O segundo golpe é
novamente zerar os cofres, falir literalmente o serviço público, saúde,
educação (à exceção da segurança, que dá sustentabilidade aos negócios
burgueses, John Locke já o dizia). E a “única” opção, finalmente é vender todo
o patrimônio estatal, as universidades serão o primeiro alvo. E enfim, voi-a-lá, a iniciativa privada entra em
cena como o derradeiro salvador do capital. Xeque mate!
Não
seria exagero equiparar o projeto do governo Richa com o laboratório executado
no Chile de Pinochet e levado à exaustão por Margareth Thatcher na Inglaterra. Estranhamente
o governador uniu o liberalismo excludente com as oligarquias do interior, a
família Barros. Onde o governo federal combate a crise com remédios
keynesianos, Richa investe na austeridade. No lugar dos estímulos à economia,
aumento de impostos. Onde há desoneração da cesta básica, o Paraná aumenta o
ICMS. É um governo que cumpre a risca cartilha neoliberal e o rolo compressor,
a política de choque, apenas começou a sair do papel. Deter este processo é a
função de todos nós.
Leandro
Konder, no belo livro “O marxismo na batalha da ideias”, comparou a História
metaforicamente à escada rolante, pois certamente ela tem um sentido, um ritmo,
uma direção determinada. Mas cabe ao homem ou a humanidade o processo de
estacionar na escada rolante, descer ou acelerar o passo. Contudo, ainda assim
ela continua no seu ritmo. A analogia é interessante para pensar as condições
econômicas e sociais da conjuntura conservadora em que vivemos, um retrocesso
inimaginável desde 1964. A greve geral é uma arma, está na modernidade como o
mito de Josué no Antigo Testamento, isto é, a tentativa de parar o tempo, de
deter um desenvolvimento catastrófico. “O mundo de ponta cabeça”, título
célebre de Christopher Hill é também uma citação bíblica que denota a ação
humana, terrena, capaz de mudar o curso da história.
Referências:
ANDRADE, Oswald de. A crise da filosofia messiânica.
In: Obras completas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1970.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
KONDER, Leandro. O
marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio
de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio, uma
leitura das teses sobre o conceito de História. Tradução de Wanda Nogueira
Brant. São Paulo: Boitempo, 2005.
MARX, Karl. O
18 brumário de Luís Bonaparte. Tradução Nélio Schneider; prólogo Herbert
Marcuse. São Paulo: Boitempo, 2011.