segunda-feira, 4 de maio de 2015

29-04-2015 O “CHOQUE” DE GESTÃO DE BETO RICHA

Sem a ideia de uma vida futura, seria difícil ao homem suportar a sua condição de escravo. Daí a importância do messianismo na história do patriarcado (Oswald de Andrade).

Na medida em que a humanidade desloca o sentido da história, do passado e presente, para um futuro indeterminado, quer seja o paraíso, a sociedade sem classes ou a crença ilimitada no progresso técnico, ela tende a negar o presente e as lutas da ordem do dia. Mesmo Marx, no Dezoito brumário fala em “poesia do futuro” e não em resgatar as energias atadas na tradição e na experiência. Trata-se de uma filosofia da história que, com Santo Agostinho ganhou fundamentação prática, é o processo de “esticar o círculo” da história grega e romana, o tempo do eterno retorno; a história desde Agostinho tem um sentido linear, um fim, uma meta, é escatológica, portanto. É a partir deste viés que os fatos ocorridos em Curitiba em 29-04-015 podem ser compreendidos profundamente e não apenas em essência. Na medida em que o governador Beto Richa começa a implantar seu projeto de desestatização, a engenharia do estado mínimo neoliberal, ele ameaça a própria noção de futuro da classe trabalhadora, de esperança. Reside aí um grande risco ao operariado, mas também o seu revés, a união de toda a classe em uníssono, pois o messias moderno não vem como redentor dos céus, ele é a própria humanidade redimida enquanto coletividade (LÖWY, 2005).   
É compreensível a busca de esperança no futuro. Walter Benjamin (1994), outro autor messiânico, no ensaio “Experiência e pobreza”, afirma que “nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadoras que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, e experiência moral pelos governantes”. A esta última frase poderíamos acrescentar “experiência imoral dos governantes”. Pois bem, é a partir desta crise da modernidade, de tradições, experiência, da capacidade de narrar que, pode-se dizer, a classe trabalhadora perdeu sua capacidade de odiar, de luta, de orgulho. Engels, em Condição da classe trabalhadora na Inglaterra, narra o enfrentamento aberto de proletários com burgueses durante a Revolução Industrial. Edward Thompson, em Costumes em comum, descreve as formas sutis e engenhosas dos trabalhadores “persuadirem” os patrões por melhores condições de trabalho, com cartas de ameaças ou mesmo atentados. George Rudé, em A multidão na história, demonstra como os motins foram eficazes na regulação do preço do pão e (pasme) até do dizimo da paróquia. Auguste Blanqui deixou um espectro de temor entre os franceses durante todo o século XIX e a Comuna de Paris marcou a primeira grande experiência de autogestão da classe trabalhadora, fenômeno que Marx descreveu como “um assalto aos céus”!
Mas com o “avanço” técnico e a ilusão do progresso a classe trabalhadora perdeu sua capacidade de odiar, de crítica; com as migalhas trabalhistas tornou-se passiva; com a social democracia que provoca miopia avançada, tornou-se iludida no sonho de aburguesar-se. Ao deslocar o eixo temporal histórico do passado para o futuro (KOSELLECK, 2009), o proletariado (incluso aí os professores, jamais nos esqueçamos disso) não mais retira suas energias da tradição, mas da esperança; dos descendentes libertados e não dos antepassados escravizados. Portanto temos nossa parcela de culpa nos eventos supracitados, o governador Beto Richa é apenas o operador da “mão invisível do mercado”.
Dito isto, vou descrever factualmente os três dias de batalha em Curitiba e, ao final, retornar à tese inicial e expor a verdadeira motivação, o projeto neoliberal enfim posto em prática no fatídico 29-04. Saímos de Maringá na noite de segunda (27-04), num ônibus fretado pelo sindicado dos servidores da UEM. Entre os presentes estavam alunos de diversos cursos, servidores e sindicalistas, jovens de dezoito anos e senhores de 60. Chegamos na manhã de terça na capital e montamos acampamento na praça em frente à Assembléia, no centro cívico de Curitiba. Havia, de antemão, um clima bastante tenso, pois soubemos que naquela madrugada os carros de som do sindicato de professores foram guinchados à força pela tropa de choque da PM e os poucos que resistiram à investida na calada da noite foram reprimidos com truculência e gás de pimenta.
Na tarde de terça o projeto de lei número 252-2015 passou pela análise de comissão e justiça e o revisor pediu prazo de 24 horas para entregar o documento final para votação dos deputados. Portanto sabíamos que a votação seria na quarta-feira dia 29-04. Mas naquela tarde, a tentativa do sindicato em colocar um carro de som no espaço público do centro cívico causou alvoroço dos PMs e mobilização da tropa de choque para impedir seu acesso. Diversas viaturas cercaram as entradas possíveis e inevitavelmente houve o primeiro atrito. O nervosismo dos policiais, o clima de guerra, já davam mostras do que seria de fato o massacre do dia seguinte. Apenas com grande mobilização, um jogo de paciência, de centímetro em centímetro é que foi possível encaminhar o caminhão no interior de um local público, não sem sentir os efeitos de gás lacrimogêneo. Foi o ensaio geral para a quarta-feira. Convém notar que a própria instalação de banheiros químicos foi vetada no local.
Após o entrevero uma aparente boa notícia parecia por fim às expectativas iminentes de confronto. Os advogados do sindicato conseguiram uma liminar (em foto) que permitia a entrada dos manifestantes (conforme a capacidade da casa, cerca de 400 pessoas). Se o Sr. deputado Traiano e o judiciário paranaense corrompidos pelo Richa tivessem aceito o documento, provavelmente toda a barbárie do dia seguinte teria sido evitada, ao menos fora da Assembléia. Mas não, ele foi cassado de um dia para o outro, numa rapidez pouco habitual em se tratando do judiciário...
A praça de guerra. Antes de descrever o caos e a barbárie promovidos pelo secretário Francischini é coerente analisar a estratégia de “defesa” da Alep. Seguramente o cerco ao prédio foi planejado por semanas, uma organização militar de bloqueio e isolamento de perímetro visto somente em guerras. Haviam três barreiras humanas, a primeira formada por soldados e jovens cadetes, estes evitaram ao máximo agressões e o conflito. Logo atrás dos milhares de PMs estavam os militares mais preparados, o choque e a rotan, às centenas, lembravam os pretorianos romanos protegidos por armaduras, escudos e um blindado com canhões de água. A terceira e última barreira a ser vencida estava postada logo na rampa de entrada do prédio, dezenas de cães, alvoroçados e tão raivosos quanto o próprio secretário de “segurança”. O ataque ao cinegrafista da Band deu mostras do que poderia ter ocorrido caso rompêssemos o front. Até o teto dos edifícios estava guarnecido e um helicóptero dava apoio tático do deslocamento das massas para melhor direcionamento do Choque, além de despejar bombas de gás lacrimogêneo.
Às 14:30 da quarta-feira, após vencidas todas as tentativas diplomáticas para o acesso à votação e concomitante ao início da sessão o inevitável embate teve início com a tentativa de romper o cerco policial. A repressão foi inversamente proporcional ao avanço dos professores, desorganizados, numa frente única que facilitou o bloqueio. Não havia tática entre os servidores, apenas vontade e bravura rapidamente dispersada pelas bombas de efeito moral, balas de borracha e gás lacrimogêneo. O gás lacrimogêneo (cloroacetofenona) é considerado “a mais humana” das armas químicas, empregado desde a Primeira Guerra Mundial, afeta as mucosas do rosto (olhos, nariz e boca); é impossível manter-se mais de trinta segundos sob efeito do gás, a respiração é bloqueada, as lágrimas são estimuladas ao máximo e, em casos extremos pode provocar taquicardia. Os mais velhos foram afetados gravemente, com desmaios e até convulsões.
O conceito de batalha ou confronto pressupõe igualdade de forças no embate, o que não houve, foi um massacre. A tropa de choque dispersou a massa e isolou os organizadores na retaguarda em frente à prefeitura, há cerca de 200 metros da assembléia, onde os feridos eram levados e atendidos. A entrada de ambulância, a mais elementar condição de humanidade, também foi proibida. Durante duas horas, ininterruptamente as bombas e os tiros não cessaram. Sabemos que os apelos de clemência da esfera federal foram recusados pelo governo. Mesmo a comissão de senadores que veio a Curitiba na tentativa de pacificação teve sua atuação nula e impotente. A votação ocorreria a qualquer preço e ocorreu.
A história se repetiu. Em 1912 um coronel belicista como pretensões políticas em Curitiba, chamado João Gualberto, levou cordas e uma metralhadora para trazer o monge José Maria e os rebeldes do Contestado amarrados ou mortos a capital do estado. Os ferozes caboclos do Paraná, no entanto, resistiram, a metralhadora falhou e no combate à arma branca o coronel acabou morto pelos revoltosos. Para os desavisados, Gualberto ainda é o patrono da polícia militar do Paraná, mas já tem um concorrente a altura, o secretário Francischini. Naquela ocasião o messianismo uniu todos os revoltosos, a expectativa de ressurreição do Monge José Maria e o retorno de um exército encantado mantiveram a luta dos caboclos pela manutenção de seus direitos tradicionais, alheado a eles pela nova ordem capitalista e a monetarização da terra. Resistiram bravamente por mais três anos contra não apenas a polícia e milícias estaduais, mas contra a metade dos efetivos do exército de então, cerca de seis mil soldados, aviação e modernos armamentos de guerra.
A irmandade dos rebeldes do Contestado pode nos deixar algumas lições: ainda tinham a seu favor todo o fervor da experiência, que nós perdemos. Tinham a fé nas tradições, que trocamos pelo comodismo das telas de led e a revolução dos smarth fones. Em síntese, vale a máxima de Walter Benjamin, de que todo documento de cultura é também um documento de barbárie. A evolução da técnica traz consigo um índice avesso, o retrocesso da sociedade. Contudo, a experiência de choque sofrida pelos professores no “dia das lamentações” pode ser uma data emblemática. A virada de mesa, a tomada de consciência de que os professores fazem parte de uma forma muito peculiar de sacerdócio. A história do sacerdócio caracteriza-se como fonte do que Friedrich Nietzsche havia de chamar a Moral de Escravos. Nos velhos livros religiosos, verifica-se uma coincidência de ordenações, princípios e máximas que poderiam constituir a Cartilha do Escravo Perfeito.
O sacerdote foi muitas vezes o legislador, outras vezes, através de augúrios e oráculos, presidiu a paz como ordenou a guerra. Sacerdócio quer dizer ócio consagrado aos deuses. O ócio não é esse pecado que farisaicamente se aponta como a mãe de todos os vícios. Ao contrário, Aristóteles atribui o progresso das ciências no Egito ao ócio concedido aos pesquisadores e aos homens de pensamento e de estudo. A palavra ócio em grego é sxolé, donde se deriva escola. É o que nos ensina o filósofo e escritor modernista Oswald de Andrade.
Somente o sacerdócio é capaz de deter o programa de governo do Richa, o “choque” de gestão, finalmente posto em prática no dia 29-04. Não se trata de mera analogia entre o neoliberalismo e a tropa de choque (teoria e prática), mas de um plano de governo que somente agora, sublimado pelo gás lacrimogêneo, toma forma. Este foi apenas o primeiro round, o primeiro golpe contra a classe trabalhadora. Primeiro furta-se o fundo de previdência que mantém a liquidez do serviço público do estado, trata-se de um jogo de xadrez. O segundo golpe é novamente zerar os cofres, falir literalmente o serviço público, saúde, educação (à exceção da segurança, que dá sustentabilidade aos negócios burgueses, John Locke já o dizia). E a “única” opção, finalmente é vender todo o patrimônio estatal, as universidades serão o primeiro alvo. E enfim, voi-a-lá, a iniciativa privada entra em cena como o derradeiro salvador do capital. Xeque mate!
Não seria exagero equiparar o projeto do governo Richa com o laboratório executado no Chile de Pinochet e levado à exaustão por Margareth Thatcher na Inglaterra. Estranhamente o governador uniu o liberalismo excludente com as oligarquias do interior, a família Barros. Onde o governo federal combate a crise com remédios keynesianos, Richa investe na austeridade. No lugar dos estímulos à economia, aumento de impostos. Onde há desoneração da cesta básica, o Paraná aumenta o ICMS. É um governo que cumpre a risca cartilha neoliberal e o rolo compressor, a política de choque, apenas começou a sair do papel. Deter este processo é a função de todos nós.  
Leandro Konder, no belo livro “O marxismo na batalha da ideias”, comparou a História metaforicamente à escada rolante, pois certamente ela tem um sentido, um ritmo, uma direção determinada. Mas cabe ao homem ou a humanidade o processo de estacionar na escada rolante, descer ou acelerar o passo. Contudo, ainda assim ela continua no seu ritmo. A analogia é interessante para pensar as condições econômicas e sociais da conjuntura conservadora em que vivemos, um retrocesso inimaginável desde 1964. A greve geral é uma arma, está na modernidade como o mito de Josué no Antigo Testamento, isto é, a tentativa de parar o tempo, de deter um desenvolvimento catastrófico. “O mundo de ponta cabeça”, título célebre de Christopher Hill é também uma citação bíblica que denota a ação humana, terrena, capaz de mudar o curso da história.  

Referências:
ANDRADE, Oswald de. A crise da filosofia messiânica. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
KONDER, Leandro. O marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio, uma leitura das teses sobre o conceito de História. Tradução de Wanda Nogueira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005.

MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. Tradução Nélio Schneider; prólogo Herbert Marcuse. São Paulo: Boitempo, 2011.

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