Um ano de perdas inestimáveis em termos de
intelectualidade e ideais socialistas. Depois do maestro Eric Hobsbawm, agora
perdemos o ícone, e sempre jovem, Oscar Niemeyer. De todas as inovações da
“moderna” arquitetura que marcou o estilo Niemeyer, o que a imprensa jamais vai
divulgar é que suas convicções ideológicas, comunistas, sempre sobrepuseram e
moldaram sua composição material. Sua marca registrada, as curvas, a repulsa ao
ângulo reto, são inspirados no corpo-humano, “nas nádegas de uma mulata”, como
ele mesmo gostava de afirmar, sem nenhuma conotação sexual ou pejorativa, mas
inversamente, com aspecto valorativo.
Essa “audácia arquitetônica”, que difere do
senso-comum, que foge aos mesmismos entediantes que forçam as individualidades
e peculiaridades a seguir as regras e os conceitos tidos como naturais e quase
imperceptíveis de uma geração que nasce e vive para consumir, hoje choca, ainda
que pela beleza, mas que deveria ser, em vez de exceção, regra geral. As formas
de Niemeyer se destacam, pelo seu exotismo, exatamente por fugir dos
lugares-comuns, por deixar fluir e destacar as formas e expressões do corpo-humano,
quente e vivo, sobre a frieza morta do concreto.
Isto não é novidade! As gregos já o faziam no século
V a.C. Basta um exercício de rememoração para lembrar que o estilo grego de
construção, sobretudo o ateniense, já valorizava as formas do corpo entre as
colunas de mármore. Uma civilização que valoriza as expressões corporais, e os
gregos foram mestres e insuperáveis nesse quesito, permite que as formas
humanas se sobreponham às materiais. A ágora (praça pública), a acrópole
(Parthenon), permitiam ao cidadão uma profunda interação entre a cidade e o
corpo-humano. Em todas as suas manifestações os espaços da polis deveriam facilitar a exposição e a expressão do corpo. Isso
fica evidente nos banhos públicos, nas orkestras (o teatro grego em forma de
semicírculo), nos ginásios onde os exercícios eram realizados com o corpo
inteiramente nu (daí deriva a palavra ginástica, do grego gímnos = nu).
A expressão corporal entre os gregos era motivo de
orgulho e uma manifestação de cultura que os diferenciava dos povos ditos
bárbaros. O que fica claro na arte grega, em esculturas como a Afrodite de
Medos (com os seios a mostra, que motivaria o quadro de Delacroix sobre
Revolução Francesa) e nas obras magníficas de Míron, como o “Discóbolo”.
Atualmente, em vez de orgulho, há um sentimento de vergonha do corpo, é preciso
escondê-lo, moldá-lo de acordo com a estética moderna, a ditadura da magreza;
mas sobretudo, o corpo mais delineado e escultural, é eclipsado pela... tosca
arquitetura que esconde o humano e valoriza o concreto.
O que escrevo é referendado pelos autores que
estudam a História das Cidades, autoridades como Richard Sennett em “Carne e
Pedra”, e Gustave Glotz em “A Cidade Grega”. O próprio Marx já havia profetizado
em 1843, nos Manuscritos econômico-filosóficos que “a desvalorização do mundo
humano aumenta em proporção direta com a valorização do mundo das coisas”, um
texto com enorme atualidade. Nesse sentido, não é mera coincidência que o
estilo arquitetônico de Niemeyer seja chamado de... “Escola Ateniense”. Um
exemplo específico desse estilo é o prédio da antiga sede do Ministério da
Educação no Rio de Janeiro, projetado ainda em 1940, onde não existe térreo,
nem garagem, mas a continuação do calçamento entre as colunas, sem paredes.
A arte de Niemeyer nos faz pensar que a vida não se
restringe ao individualismo ou isolamento solitário nas auto-prisões de
concreto, os apartamentos e condomínios fechados. Que o homem é um animal
social e deve viver em comunidade e que o mundo pode ser habitado e
compartilhado por toda a raça humana, desde que não haja tamanha cobiça e
concupiscência. Utopia: Obviamente. Isso só seria possível numa sociedade
socialista. Justamente por isso Niemayer é uma genialidade em extinção, por que
vai contra os sensos-comuns da unanimidade burra. No entanto, seu legado está
eternizado, não nas suas obras materiais, mas nas ideias. O corpo perece, tal
como toda matéria, mas as ideias são perpétuas. Afinal, “a vida é um sopro”.